Quadro de paz dos EUA, ativos russos congelados e as linhas vermelhas de Bruxelas
A guerra na Ucrânia entrou numa nova fase política. Depois de quase três anos de conflito em grande escala, Estados Unidos e Ucrânia anunciaram um “quadro de paz atualizado e refinado”, resultado de conversas na Suíça. O plano, ainda em construção, reacendeu expectativas de um eventual cessar-fogo com a Rússia — mas também abriu uma disputa silenciosa sobre quem vai definir os termos da paz.
No centro dessa disputa está a União Europeia (UE). Diretamente afetada pela guerra, pelos fluxos de refugiados, pela pressão energética e pelo impacto econômico, a Europa tenta evitar o papel de mera espectadora num acordo costurado entre Washington, Kiev e Moscou. A forma como a UE se posicionar agora pode determinar não só o futuro da Ucrânia, mas o próprio projeto europeu de segurança e integração.
O “quadro de paz” e a reação europeia
O anúncio de um quadro de paz pelos EUA e pela Ucrânia foi recebido em Bruxelas com uma mistura de alívio e desconfiança.
- Alívio, porque qualquer movimento em direção a negociações indica, ao menos em tese, a possibilidade de redução da violência, reconstrução da Ucrânia e alívio das pressões sobre a economia europeia.
- Desconfiança, porque a Europa teme ser empurrada para um acordo que não reflita plenamente seus interesses estratégicos e, sobretudo, os interesses da própria Ucrânia.
É nesse contexto que os países europeus decidiram discutir o plano norte-americano à margem da cúpula UE–União Africana em Luanda, Angola. O fato de o debate ocorrer à margem de outro grande evento revela duas coisas:
- A urgência do tema — os europeus não querem esperar uma nova reunião formal para tratar de algo que pode redefinir o quadro de segurança no continente.
- A fragmentação interna — ainda não há consenso entre os Estados-membros sobre até onde a Europa deve ir para apoiar ou contestar a proposta dos EUA.
Essa discussão em Luanda é uma tentativa de reconstruir unidade interna e formular uma posição europeia minimamente coesa diante de um possível processo de negociação.
O poder dos ativos russos congelados
Um dos instrumentos mais importantes na mesa europeia hoje são os ativos russos congelados nos países da UE. Desde o início da invasão em larga escala, bilhões de euros em reservas e bens ligados ao Estado russo foram bloqueados em jurisdições europeias.
Agora, cresce o debate sobre como transformar esse congelamento em alavanca política e financeira:
- De um lado, há países — com destaque para os Estados bálticos, como a Lituânia — defendendo que esses ativos devem ser usados de forma mais assertiva, seja como garantia para reparações de guerra à Ucrânia, seja como instrumento de pressão direta sobre Moscou.
- De outro, alguns governos temem o precedente jurídico e financeiro: se ativos soberanos podem ser apropriados em função de decisões políticas, qual mensagem isso envia a outros países que mantêm reservas em bancos europeus?
A discussão não é apenas técnica. Ela revela a disputa sobre o papel que a UE quer desempenhar:
- Se optar por uma postura mais dura, usando esses ativos para financiar a reconstrução da Ucrânia ou condicionar sua liberação a concessões russas, a Europa se coloca como ator central e assertivo no processo de paz.
- Se adotar uma postura mais cautelosa, pode ser vista como dependente da estratégia dos EUA e menos preparada para pagar o custo de uma política externa mais independente.
No fundo, trata-se de decidir se a UE está disposta a transformar seu poder financeiro em poder geopolítico real.
As linhas vermelhas da Europa: território, soberania e futuro da Ucrânia
Enquanto avalia o plano dos EUA, a UE também vem tentando desenhar as suas próprias “linhas vermelhas” em relação à Ucrânia. Entre elas, destacam-se:
- Não aceitar mudanças de fronteiras pela força
A posição formal europeia é clara: a integridade territorial da Ucrânia, dentro de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas, deve ser respeitada. Na prática, isso significa rejeitar a ideia de legitimar anexações russas, mesmo que um eventual acordo proponha “soluções criativas” para territórios ocupados. - Não conceder poder de veto a Moscou sobre a entrada da Ucrânia na UE
A possibilidade de adesão da Ucrânia à União Europeia é um dos pontos mais sensíveis. Para Bruxelas, permitir que a Rússia dite os termos ou imponha limites permanentes à integração europeia de Kiev seria recompensar a agressão. Por isso, líderes europeus querem deixar claro que a porta da UE permanecerá aberta à Ucrânia — embora o processo seja longo e complexo, ainda mais em meio a uma guerra. - Garantir que a Ucrânia mantenha sua soberania de decisão
A UE tenta se colocar não só como financiadora e apoiadora militar, mas também como parceira política, garantindo que a Ucrânia tenha voz própria nas negociações, em vez de ser apenas um elemento dentro de uma disputa entre Washington e Moscou.
Essas linhas vermelhas servem tanto como mensagem a Moscou quanto como recado aos EUA: a Europa não está disposta a aceitar um acordo que sacrifique princípios fundamentais de soberania e direito internacional em troca de uma paz rápida, porém instável.
A tensão silenciosa: Washington, Bruxelas e Kiev
Por trás dos discursos públicos, existe uma tensão real entre três polos:
- Washington, que busca um equilíbrio entre apoiar a Ucrânia, conter a Rússia e evitar um conflito prolongado que consuma recursos e atenções estratégicas.
- Bruxelas, que sente diretamente o impacto da guerra e quer garantir que qualquer paz reflita os interesses europeus de longo prazo — segurança, energia, comércio e estabilidade política.
- Kiev, que luta pela própria sobrevivência como Estado soberano e não quer ser pressionada a aceitar um acordo que possa congelar o conflito em linhas de frente desfavoráveis ou cristalizar perdas territoriais.
A UE se vê, portanto, num papel delicado: precisa apoiar a Ucrânia, dialogar com os EUA e, ao mesmo tempo, mostrar que não aceitará ser reduzida a um mero “apêndice” da estratégia norte-americana.
Paz a qualquer preço? Os riscos de um acordo frágil
Embora a ideia de um quadro de paz gere esperança, há riscos importantes:
- Congelar o conflito em vez de resolvê-lo
Um cessar-fogo que não trate das causas profundas da guerra — sobretudo o status dos territórios ocupados e as garantias de segurança para a Ucrânia — pode criar uma espécie de “conflito congelado”, como já aconteceu em outras regiões pós-soviéticas. Isso deixaria a Ucrânia vulnerável a futuras ofensivas e manteria a Europa presa a uma instabilidade permanente. - Dividir a UE internamente
Se alguns países aceitarem termos mais próximos das exigências russas (por pragmatismo econômico ou cansaço da guerra), enquanto outros insistirem numa postura firme de não concessão territorial, a própria unidade da União Europeia pode ser colocada em risco, enfraquecendo a posição do bloco como negociador. - Minar a credibilidade do Ocidente
Se a mensagem enviada for a de que, no fim, a força compensa — isto é, que uma invasão em larga escala pode garantir ganhos territoriais permanentes — a credibilidade de toda a arquitetura de segurança europeia e internacional será seriamente abalada.
O que está em jogo para a Europa
A guerra na Ucrânia nunca foi apenas um conflito entre dois países. Para a UE, ela se transformou em um teste existencial em vários níveis:
- Teste de princípios: até que ponto a Europa está disposta a defender, na prática, valores como soberania, estado de direito internacional e autodeterminação?
- Teste de poder: a UE pretende ser um ator geopolítico capaz de influenciar o rumo de guerras e acordos de paz, ou continuará dependendo da liderança estratégica dos EUA?
- Teste de unidade interna: o bloco será capaz de manter coesão política diante de pressões econômicas, sociais e energéticas?
O debate sobre o quadro de paz e o uso dos ativos russos congelados é, na realidade, uma manifestação concreta dessas três questões. Cada decisão — apoiar integralmente o plano dos EUA, exigir mudanças, usar ou não os ativos congelados como alavanca — sinaliza que tipo de Europa está sendo construída.
Conclusão: o papel da UE na arquitetura pós-guerra
À medida que os esforços diplomáticos ganham força, a União Europeia precisa escolher entre dois caminhos:
- Aceitar um lugar secundário na mesa, adaptando-se ao que for decidido entre Washington, Kiev e Moscou, tentando mitigar danos e administrar as consequências.
- Assumir uma postura mais protagonista, usando seu peso econômico, sua posição geográfica e seus instrumentos políticos — como os ativos congelados e a perspectiva de adesão da Ucrânia — para influenciar ativamente o desenho da paz.
Nenhuma das opções é simples. A primeira pode trazer um alívio mais rápido, mas com alto risco de instabilidade futura e perda de credibilidade. A segunda exige coragem política, consenso interno e disposição para enfrentar custos — financeiros, energéticos e estratégicos.
O que está em jogo não é apenas o fim da guerra na Ucrânia, mas o tipo de ordem europeia que surgirá depois dela. A forma como a UE lida com esse quadro de paz, com os ativos russos e com as suas próprias linhas vermelhas definirá, por muitos anos, se a Europa será vista como um ator que molda a história ou apenas reage a ela.

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