O Reino Unido diante da conta do Brexit

Bandeiras da União Europeia lado a lado, simbolizando o bloco em meio aos desafios políticos e econômicos atuais.
Bandeiras da União Europeia lado a lado, simbolizando o bloco em meio aos desafios políticos e econômicos atuais.

Orçamento, estagnação e o debate sobre reaproximação com a União Europeia

Anos depois de deixar a União Europeia, o Reino Unido vive um momento de acerto de contas com a realidade econômica do Brexit. O novo Orçamento do governo colocou esse tema de volta no centro da política britânica, não apenas pelos números apresentados, mas sobretudo pelo que eles sugerem: a economia está menor, menos dinâmica e mais pressionada do que estaria se o país tivesse permanecido no mercado único europeu.

O debate em Londres não é mais se o Brexit trouxe impactos econômicos, mas como o governo admite esses impactos e o que está disposto — ou não — a fazer para reduzi-los. Entre análises, projeções e disputas partidárias, o “custo do Brexit” deixou de ser abstração ideológica e entrou de vez na linguagem do crescimento, da produtividade e do padrão de vida.

A narrativa oficial: minimizar danos, exaltar “liberdades”

No discurso do governo, o Orçamento tenta equilibrar duas mensagens:

  • De um lado, admite, mesmo que de forma implícita, que a economia enfrenta dificuldades persistentes: crescimento fraco, produtividade estagnada, pressão sobre serviços públicos e carga tributária historicamente elevada.
  • De outro, insiste em defender as supostas “oportunidades do Brexit”: liberdade regulatória, possibilidade de firmar acordos comerciais próprios e maior autonomia em políticas industriais e de imigração.

Na prática, no entanto, essas “liberdades” ainda não se traduziram em um salto visível de competitividade ou prosperidade. O Orçamento não apresenta uma ruptura clara com o modelo atual, e isso alimenta a percepção de que o governo reconhece o problema, mas não está disposto a enfrentá-lo de frente.

O diagnóstico dos economistas: economia menor do que poderia ser

Entre analistas independentes, instituições de pesquisa e grupos pró-UE, o diagnóstico é mais direto: o Brexit impôs custos estruturais à economia britânica. Esses custos aparecem em vários canais:

  1. Comércio e barreiras não tarifárias
    A saída do mercado único e da união aduaneira significou:
    • Mais burocracia, formulários, inspeções e custos logísticos para exportadores e importadores;
    • Maior dificuldade especialmente para pequenas e médias empresas, que não têm estrutura para lidar com processos mais complexos;
    • Redução da competitividade de produtos britânicos em mercados europeus.
  2. Investimentos
    A incerteza prolongada, tanto durante as negociações quanto após a saída efetiva, levou muitas empresas a:
    • Atrasar ou cancelar investimentos no Reino Unido;
    • Transferir operações — sobretudo no setor financeiro e de serviços — para cidades como Dublin, Frankfurt, Paris e Amsterdã;
    • Ver o país como mercado menos atrativo como “porta de entrada” para a UE.
  3. Produtividade e crescimento potencial
    Com menos integração, menos investimento e mais fricções comerciais, a produtividade britânica, que já vinha fraca desde a crise financeira de 2008, perdeu ainda mais fôlego. O resultado é um crescimento estrutural mais baixo do que o de economias comparáveis, o que se reflete em salários, arrecadação e capacidade de financiar serviços públicos.

É nesse contexto que o novo Orçamento é lido: o país não está apenas lidando com choques globais (pandemia, guerra, inflação), mas também com um freio adicional criado por sua própria decisão política de sair da UE.

“Admitir o dano” sem mudar a rota

Grupos pró-UE e parte da oposição interpretam o Orçamento como um reconhecimento envergonhado da situação. Não há mais a retórica triunfalista de que o Brexit seria um motor de prosperidade quase automático. Em vez disso, o discurso oficial se deslocou para algo mais defensivo: admitir dificuldades, culpar fatores externos e prometer “gestão responsável”.

No entanto, esse reconhecimento não vem acompanhado de uma estratégia clara de reaproximação com a União Europeia. Em geral, as medidas se limitam a:

  • Ajustes pontuais em setores específicos;
  • Tentativas de melhorar a fluidez de alguns fluxos comerciais;
  • Discursos sobre “melhorar o relacionamento” sem mexer nas decisões centrais do Brexit.

Para os críticos, isso revela o coração do problema: falta coragem política para enfrentar o custo de rever posições, negociar concessões com Bruxelas e admitir perante o eleitorado que a narrativa original estava, no mínimo, incompleta.

O custo político de falar em reaproximação

Qualquer discussão séria sobre reduzir o custo econômico do Brexit passa, inevitavelmente, por reaproximação com a UE. Isso poderia significar, em diferentes graus:

  • Acordos setoriais mais profundos (por exemplo, em serviços financeiros, pesquisa, mobilidade de trabalhadores, padrões regulatórios);
  • Maior alinhamento a regras europeias em troca de acesso ampliado ao mercado único;
  • Em cenários mais avançados, uma relação semelhante à de países como a Noruega ou a Suíça, com integração econômica intensa, mas fora das instituições políticas da UE.

O problema é que cada passo nessa direção tem custo político interno:

  • Para setores mais eurocéticos, qualquer reaproximação significativa soa como “traição” ao resultado do referendo de 2016;
  • Para o governo, há o medo constante de ser acusado de “voltar atrás” ou de reabrir uma ferida que foi explorada eleitoralmente por anos;
  • Para a oposição, defender abertamente uma reconfiguração profunda da relação com a UE ainda é visto como arriscado em regiões onde o sentimento pró-Brexit foi forte.

Assim, forma-se um impasse: a economia sofre, analistas apontam soluções, mas a política evita confrontar o tema com a profundidade necessária.

Orçamento, serviços públicos e padrão de vida

O impacto do Brexit não aparece apenas em gráficos técnicos. Ele bate diretamente na vida cotidiana por meio de:

  • Pressão sobre as finanças públicas: com crescimento mais fraco e produtividade baixa, a arrecadação cresce lentamente, enquanto demandas por saúde, educação e assistência social aumentam;
  • Carga tributária alta: para manter serviços públicos minimamente operacionais, o Estado precisa de mais receita, e isso recai sobre empresas e cidadãos;
  • Serviços pressionados: o sistema de saúde (NHS), por exemplo, enfrenta falta de pessoal e recursos, enquanto a população envelhece.

O Orçamento tenta conciliar promessas de responsabilidade fiscal com necessidade de aliviar o custo de vida e investir em setores-chave. Mas, sem enfrentar os fatores estruturais que limitam o crescimento, inclusive o Brexit, o risco é repetir um ciclo de remendos: pequenos ajustes aqui e ali, sem alterar o quadro geral de estagnação relativa.

A comparação silenciosa: Reino Unido x União Europeia

Outro elemento incômodo no debate é a comparação com a trajetória de países da própria UE. Embora o bloco também enfrente desafios — guerra na Ucrânia, crise energética, inflação —, muitos indicadores sugerem que:

  • O crescimento e a produtividade de várias economias europeias não sofreram o mesmo tipo de choque estrutural associado à ruptura com o mercado único;
  • Empresas que antes viam Londres como centro natural de operações europeias agora dividem ou transferem atividades para outras capitais do bloco.

Essa comparação silenciosa ajuda a consolidar a percepção, entre economistas e grupos pró-UE, de que o Reino Unido se colocou voluntariamente em desvantagem.

O que poderia mudar o cenário?

Para que o debate avance do diagnóstico para a ação, alguns elementos seriam decisivos:

  1. Mudança de governo ou de linha dentro do próprio governo
    Uma liderança disposta a explicar ao público que “reaproximar não é trair” e que ajustar o relacionamento com a UE é uma forma de proteger empregos e serviços públicos poderia abrir espaço para negociações mais ambiciosas.
  2. Pressão econômica mais intensa
    Se o baixo crescimento e a pressão fiscal se tornarem insuportáveis, a demanda por soluções mais ousadas pode vir não apenas de partidos de oposição, mas também do setor empresarial e da própria base eleitoral governista.
  3. Janela de oportunidade em Bruxelas
    Uma UE disposta a negociar arranjos específicos com o Reino Unido, sem reabrir todas as feridas da saída, pode facilitar acordos graduais em áreas estratégicas, como pesquisa, mobilidade e serviços financeiros.

Conclusão: entre a admissão do erro e o medo de voltar atrás

O debate atual sobre o Orçamento e o custo do Brexit mostra um Reino Unido preso entre dois mundos:

  • De um lado, os fatos econômicos: crescimento menor, produtividade fraca, investimentos contidos e pressão sobre serviços públicos.
  • De outro, o legado político de um projeto vendido como libertação e prosperidade, difícil de ser revisitado sem que alguém tenha de admitir erros ou exageros.

O governo começa a reconhecer, ainda que nas entrelinhas, que há um preço sendo pago. Mas falta o passo seguinte: transformar esse reconhecimento em propostas concretas de reaproximação com a União Europeia, calibradas para reduzir fricções comerciais, recuperar competitividade e aliviar a pressão fiscal.

Enquanto isso não acontece, o país segue em uma espécie de meio-termo desconfortável: independente demais para colher os benefícios da integração, mas não independente o suficiente para compensar, sozinho, a perda de acesso pleno ao maior mercado vizinho. E cada novo Orçamento, em vez de encerrar o assunto, apenas reforça a mesma pergunta: quanto tempo ainda levará até que o custo do Brexit deixe de ser tabu e se transforme em agenda real de mudança?

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