Alemanha apoia plano da UE para liberar ativos russos: um mergulho no contexto, nos desafios jurídicos e nas implicações

Quatro políticos alemães em trajes formais conversando em círculo durante sessão parlamentar, com expressão séria e documentos na mão, em março de 2025.
Parlamentares alemães discutem a histórica decisão do dia 18 de março de 2025, marcada por consenso sobre medidas estratégicas para segurança e futuro do país.

A recente disposição da Alemanha de dar sinal verde a uma proposta da União Europeia para liberar cerca de €200 bilhões em ativos russos congelados, substituindo-os por títulos garantidos pela UE, representa uma escalada importante no debate político, jurídico e estratégico sobre como responder financeiramente à guerra na Ucrânia. Essa iniciativa, se concretizada, pode redefinir o papel dos dirigentes europeus frente à necessidade de sustentar militarmente, economicamente e moralmente a Ucrânia, sobretudo num cenário de incerteza quanto ao apoio externo.

O que propõe o plano

O modelo central da proposta é:

  • Utilizar os ativos da Rússia que foram congelados pela UE desde a invasão de 2022. Estima-se que uma porção relevante desses ativos (aproximadamente €200 bilhões) está retida em depositárias europeias, com grande parte em uma instituição belga.
  • Em vez de simplesmente manter esses ativos congelados, a UE propõe liberá-los para fornecer suporte à Ucrânia. No entanto, para evitar os enormes riscos legais e diplomáticos que surgiriam de uma “tomada” direta ou confiscação, o plano prevê que esses ativos sejam substituídos por títulos garantidos pela UE. Ou seja: a Rússia manteria, em princípio, sua parte original do valor via garantia europeia, enquanto a Ucrânia teria acesso aos recursos ou ao valor correspondente.
  • Também se fala em um “reparations loan” (empréstimo de reparações) para a Ucrânia, a ser pago após uma eventual resolução de paz ou acordo que exija reparações russas, ou condicionado a garantias legais desse tipo.

A posição da Alemanha: evolução e motivações

A Alemanha, por meio de fontes oficiais e do Ministro das Finanças, Lars Klingbeil, manifestou que está “aberta” à proposta, reconhecendo os desafios jurídicos, mas disposta a debater soluções. Alguns pontos de evolução no posicionamento alemão que merecem destaque:

  • No passado, Berlim expressava reservas consideráveis em relação à noção de confisco ou apropriação direta de ativos russos, por temor de violações ao direito internacional, ao princípio de propriedade estatal de reservas cambiais, e ao impacto negativo sobre a confiança de investidores externos.
  • Agora, embora ainda reconhecendo os riscos legais, a Alemanha parece disposta a aceitar o modelo de substituição via títulos garantidos pela UE, que mitigaria parte desses riscos — já que não implicaria em confisco direto no sentido clássico.
  • A mudança ocorre em meio a uma crescente preocupação com o tipo de compromisso que os países europeus terão de manter, especialmente se o apoio dos Estados Unidos a Kiev vier a enfraquecer ou se houver instabilidade geopolítica. Há assim um componente estratégico: garantir financiamento confiável para a Ucrânia com autonomia europeia.

Desafios jurídicos, práticos e políticos

O plano enfrenta uma série de obstáculos não triviais:

Questões legais

  1. Soberania e propriedade estatal: Ativos congelados, especialmente os pertencentes ao banco central de um Estado, são geralmente protegidos por normas de direito internacional. Uma “tomada” ou confisco pode ser contestada em tribunais internacionais ou arbitragem.
  2. Propriedade contratual e obrigações financeiras: Há contratos, garantias, obrigações, inclusive em sistemas financeiros internacionais, que dependem da estabilidade jurídica. Desrespeitá-los pode gerar processos judiciais longos e alto custo de reputação para a UE.
  3. Normas da UE: A UE já adotou legislação que permite usar os rendimentos extraordinários (juros, lucros de ativos imobilizados, etc.) dos ativos congelados para financiar a defesa e reconstrução da Ucrânia. Mas isso é distinto de libertar os próprios principais ativos ou substituí-los sem garantias.

Questões práticas e riscos

  1. Retaliação: Moscou já advertiu que qualquer uso que vá além da manutenção dos ativos congelados será interpretado como confisco, o que pode gerar retaliações financeiras ou legais.
  2. Confiança de investidores: A possibilidade de que ativos estatais ou reservas internacionais possam ser objeto de medidas desse tipo pode gerar apreensão entre investidores em ativos denominados em euros ou entreponentes internacionais da UE. Uma piora na percepção de risco soberano ou de garantia contratual pode ter consequências macroeconômicas.
  3. Uniformidade na UE: Nem todos os Estados-membros irão aceitar essa solução. Alguns mantêm posições mais cautelosas ou estão aliados mais próximos da Rússia, ou têm preocupações domésticas (econômicas, eleitorais, jurídicas). Isso pode tornar difícil obter consenso para leis ou regulamentos que alterem substancialmente a propriedade ou uso dos ativos.

Implicações estratégicas

Para a Ucrânia

  • Financiamento mais robusto: Se o plano se concretizar, a Ucrânia poderia contar com uma fonte significativa de recursos, usável para armamentos, reconstrução, infraestrutura, segurança energética e outros setores críticos.
  • Menor dependência externa: Diminui parcialmente a dependência da Ucrânia em relação às decisões de financiamento vindas de fora da Europa, sobretudo dos Estados Unidos ou de instituições financeiras multilaterais.

Para a UE

  • Autonomia estratégica: Fortalece a percepção de que a Europa está pronta para agir por si mesma em questões de segurança e solidariedade geopolítica.
  • Coesão interna: Este é um teste para a união dos Estados-membros em torno de uma política comum — tanto na esfera militar quanto legal e econômica. A resolução desse problema poderia reforçar credibilidade da UE em crises futuras.

Para a relação com a Rússia

  • Aumento da pressão econômica: Sob esse esquema, a Rússia continuaria sem acesso aos seus ativos, o que representa um custo significativo.
  • Potenciais contramedidas: Em retribuição, a Rússia pode aumentar sanções próprias, retaliar em tribunais internacionais ou restringir acesso de empresas ou cidadãos europeus a ativos ou contratos dentro de seu território.

Comparativos e precedentes

  • A UE já autorizou, por regulamento (Regulation (EU) 2024/1469), o uso dos lucros e rendimentos extraordinários (juros etc.) de ativos russos congelados para financiar a autodefesa e reconstrução da Ucrânia. Isso gerou somas consideráveis, embora muito menores que os €200 bilhões centrais ao novo plano.
  • Em outros contextos internacionais, em casos de sanções ou de atos de guerra, já houve precedentes de uso de ativos confiscados ou rendimentos de ativos bloqueados, mas quase sempre com base muito clara no direito nacional ou internacional, ou em processos judiciais. A novidade desta proposta está em sua escala (centenas de bilhões), no uso direto para financiamento de guerra ou reconstrução, e no modelo de substituição via garantias da UE.

Cenário futuro e possíveis desdobramentos

  1. Decisões nos próximos encontros da UE: A proposta deve ser tema central em cúpulas ou encontros informais — por exemplo, no summit informal em Copenhague. O apoio da Alemanha pode ser decisivo para conseguir maioria suficiente.
  2. Formas de implementação:
    • Criação ou uso de um Special Purpose Vehicle (SPV) ou veículo especial, responsável por emitir os títulos da UE e gerenciar a substituição dos ativos russos.
    • Emissão de títulos sem cupom (zero-coupon bonds) pela Comissão Europeia ou por entidades garantidas pela UE, de modo a reduzir o ônus financeiro imediato.
  3. Restrições ou reservas:
    • Países que têm relações mais cautelosas com a Rússia ou que temem precedentes jurídicos fortes podem pedir cláusulas de salvaguarda, como garantias de que decisões serão validadas por tribunais europeus ou internacionais.
    • Assegurar que os garantidores do título sejam credíveis e solventes, para não gerar risco de crédito para o bloco europeu.
  4. Impacto sobre o sistema financeiro global: Se aprovado, pode-se iniciar um debate mais amplo sobre a legitimidade de ativos estatais congelados em casos de sanções, guerra ou agressões, e sobre os limites entre sanções, congelamento, apreensão e uso de bens estatais estrangeiros.

Conclusão

A abertura da Alemanha ao plano da UE para usar ativos russos congelados, substituindo-os por títulos garantidos, é talvez um dos sinais mais fortes até agora de que o bloco europeu está buscando meios cada vez mais audaciosos para sustentar a Ucrânia. A medida combina urgência política, pragmatismo jurídico e risco estratégico — mas pode representar um novo marco na política de sanções, nas finanças internacionais e no papel da UE como ator global de segurança.

Se implementado com cuidado, esse modelo pode fornecer à Ucrânia recursos vitais, ao mesmo tempo em que preserva a integridade legal da UE e sua reputação internacional. Se falhar em endereçar os riscos ou em construir consenso dentro do bloco, poderá gerar desgastes legais, políticos e de confiança.

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