O leste da República Democrática do Congo (RDC) voltou a ser palco de tensões após denúncias de que o grupo rebelde Movimento 23 de Março (M23) teria roubado cerca de US$ 70 milhões em ouro de minas controladas por milícias na província de Kivu do Norte, segundo informações divulgadas por OkayAfrica e confirmadas por fontes locais.
O caso surge em meio à tentativa de implementação de um acordo de paz parcial entre o governo congolês e o grupo rebelde — um processo que, apesar dos anúncios de cessar-fogo, segue marcado por desconfiança, violações e atrasos.
O ouro como combustível da guerra
O roubo recente de milhões de dólares em ouro reforça a importância dos recursos naturais como motor financeiro dos conflitos no leste congolês. O ouro, o coltan e o estanho, minerais abundantes na região, frequentemente são explorados ilegalmente e utilizados para financiar grupos armados.
Relatórios da ONU apontam que o M23 e outras milícias impõem tributos sobre a mineração e o transporte de ouro, controlando rotas comerciais estratégicas que ligam o Congo a Ruanda e Uganda. Esses fluxos ilegais sustentam a compra de armamentos e a manutenção de uma estrutura paralela de poder nas zonas que o governo central não consegue controlar.
O valor de US$ 70 milhões equivale a uma parcela considerável das exportações oficiais de ouro do país, demonstrando o peso econômico que as milícias exercem sobre a economia nacional — e o desafio que isso representa para o Estado congolês.
O acordo de paz em andamento
Nos últimos meses, a RDC e o M23 firmaram uma série de compromissos voltados a encerrar o conflito, mas a execução tem sido lenta e irregular.
- Em abril de 2025, o governo congolês e o M23 anunciaram um cessar-fogo inicial, mediado pela Comunidade da África Oriental (EAC), após intensos combates em Kivu do Norte.
- Em julho, as partes assinaram em Doha (Qatar) uma Declaração de Princípios, prometendo restaurar a autoridade do Estado nas regiões controladas pelos rebeldes, garantir a retirada das tropas e criar um comitê conjunto de monitoramento.
- Mais recentemente, em outubro, foi estabelecido um mecanismo de supervisão internacional com representantes da ONU e da União Africana, encarregado de acompanhar o cumprimento do cessar-fogo.
Apesar desses avanços diplomáticos, a paz permanece frágil. Combates esporádicos continuam sendo relatados, e o governo congolês acusa o M23 de manter posições estratégicas em áreas ricas em recursos minerais. Por sua vez, os rebeldes afirmam que o exército congolês violou os termos do cessar-fogo.
O roubo milionário de ouro pode representar uma grave ameaça a esse processo de paz, já que reforça a autonomia financeira do grupo e levanta dúvidas sobre sua real disposição em abandonar as armas.
Ruanda e o jogo regional
O conflito no leste congolês não pode ser entendido sem considerar a rivalidade entre Kinshasa e Kigali. A RDC acusa o governo de Ruanda de apoiar o M23, fornecendo armas e suporte logístico — algo que Kigali nega sistematicamente.
A ONU, no entanto, já apresentou relatórios sugerindo envolvimento indireto ruandês, principalmente no transporte e na comercialização de ouro contrabandeado. Esses recursos, vendidos no mercado internacional, são difíceis de rastrear e se transformam em uma das principais fontes de financiamento do conflito.
O roubo de US$ 70 milhões agrava ainda mais a tensão entre os dois países, ameaçando colapsar o delicado cessar-fogo alcançado em 2025.
Impactos humanitários e sociais
O conflito entre o M23 e o governo da RDC é uma das maiores crises humanitárias do mundo. Segundo as Nações Unidas, mais de 7 milhões de congoleses estão deslocados internamente. A população civil vive entre campos de refugiados, escassez de alimentos, violência sexual e destruição de infraestrutura.
O ouro, que deveria representar prosperidade, tornou-se símbolo de sofrimento. Em muitas áreas, as minas são controladas por milícias, e trabalhadores locais são forçados a operar em condições degradantes. O Estado quase não exerce autoridade, e a ajuda internacional enfrenta dificuldades para chegar às zonas mais afetadas.
A resposta internacional
A missão da ONU na RDC (MONUSCO), embora presente no país há décadas, enfrenta críticas por sua incapacidade de impedir ataques e proteger civis. O governo congolês tem buscado cooperação militar de países vizinhos e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), tentando equilibrar a presença internacional e a soberania nacional.
Estados Unidos e União Europeia impuseram sanções direcionadas a líderes do M23 e a intermediários envolvidos no comércio ilegal de ouro. Ainda assim, especialistas alertam que o problema vai além de indivíduos — trata-se de uma rede transnacional de contrabando que liga o Congo a centros financeiros globais.
Análise: paz ameaçada pelo ouro
O roubo de ouro pelo M23 expõe a vulnerabilidade do processo de paz em curso.
Enquanto o governo da RDC tenta consolidar um cessar-fogo e restaurar o controle estatal, o grupo rebelde mostra capacidade de financiar-se independentemente — enfraquecendo as negociações e minando a confiança entre as partes.
O ouro, que simboliza riqueza, continua sendo o combustível de uma guerra que já dura mais de duas décadas. A paz, portanto, não depende apenas de acordos políticos, mas do desmantelamento das economias de guerra que sustentam o conflito.
Conclusão
O episódio dos US$ 70 milhões em ouro roubados é um lembrete de que, no leste do Congo, o caminho para a paz ainda é longo.
Apesar de avanços diplomáticos, as estruturas que alimentam a violência continuam intactas. Enquanto o ouro financiar armas em vez de desenvolvimento, o leste congolês seguirá preso em um ciclo de abundância mineral e tragédia humana.

Faça um comentário