A iniciativa “Belt and Road” da China (BRI) nasceu em 2013 com promessas grandiosas de interligar a Ásia, Europa e África por meio de corredores terrestres (“Belt”) e marítimos (“Road”). Com o passar dos anos, porém, analistas europeus e internacionais passaram a enxergar nela algo além de conectividade: uma alavanca de influência geopolítica, econômica e tecnológica chinesa.
Um relatório recente observa que a BRI evoluiu para uma “estratégia de poder” que conecta portos, ferrovias, redes digitais e narrativa de influência — e que a Europa “não pode assistir de fora”.
Por exemplo: no caso da Hungria, o projeto ferroviário entre Sérvia e Hungria financiado pela China — parte da BRI — está estimado em décadas para dar retorno, enquanto abre caminho para investimentos industriais chineses no leste europeu. Adicionalmente, a China parece utilizar o formato bilateral de acordos em vez de modelo multilateral, favorecendo negociações com países individualmente, o que pode minar a coesão da União Europeia (UE).
Em resumo: a BRI já não é apenas um plano de infraestrutura — é uma janela de oportunidade estratégica para a China entrar em setores-âmbar (energias, transportes, conectividade digital), criar dependências, e, ao mesmo tempo, projetar normas, padrões e influência fora dos domínios tradicionais ocidentais.
Por que a Europa está sob pressão
Vulnerabilidades econômicas e geopolíticas
- Dependência de infraestrutura e equipamentos chineses – Vários estudos apontam que projetos sob a BRI tendem a empregar majoritariamente empresas chinesas, materiais importados da China e pouca participação local ou europeia.
- Divisão no interior da UE – Alguns Estados‑membros abraçaram a BRI ou cooperaram com iniciativas chinesas mais ativamente (por exemplo no leste e na balcânica). Isso cria fosso entre países que veem oportunidades imediatas e outros que se preocupam com os riscos de longo prazo.
- Impactos na autonomia estratégica – A conectividade não é neutra. Ferrovias, portos, redes digitais e infraestrutura energética moldam cadeias de valor, logística e padrões de tecnologia. Se essa estrutura for dominada por atores externos (como a China), a Europa pode ver sua autonomia diminuída.
- Risco de “armadilha de dívida” e influência política – Em diversas regiões fora da Europa, a BRI foi criticada por criar dependências de empréstimos e concessões; a Europa observa esse padrão como alerta para seus parceiros ou possivelmente para alguns membros mais frágeis da UE.
O desafio de respostas tardias e fragmentadas
A Europa até agora reagiu de forma relativamente hesitante: embora haja documentos e comunicados alertando para os riscos, a implementação de políticas coerentes e a mobilização de recursos comparáveis à escala chinesa têm sido limitadas.
Como observou um relatório: “the lack of transparency … is currently the biggest hindrance in the EU formulating an effective and coherent strategy” da BRI. Ou seja: há consciência, mas não necessariamente ainda uma resposta robusta à altura do que o momento exige.
O que a Europa fez — e onde está o vácuo
Medidas e iniciativas em curso
- A UE lançou a iniciativa Global Gateway em 2021, com meta de mobilizar aproximadamente €300 bilhões até 2027 para infraestrutura, conectividade, energia limpa, digitalização, especialmente fora da UE.
- A UE também desenvolveu o quadro de “screening” de Investimentos Diretos Estrangeiros (FDI) para proteger infraestrutura crítica de influências externas.
- No âmbito de política externa, a UE tem buscado reforçar normas de transparência, sustentabilidade, boa governança, condições de mercado igualitário — tentando contrastar com os atributos mais opacos de projetos da BRI.
Pontos de fragilidade / lacunas
- Apesar dos propostos €300 bilhões para o Global Gateway, há críticas de que não se trata de novos recursos, mas sim de reempacotamento de fundos existentes — o que limita o impacto real.
- A coordenação entre os Estados‑membros da UE ainda é insuficiente: a abordagem ainda é fragmentada, com diferentes países tendo agendas distintas em relação à China/BRI.
- A UE enfrenta uma desvantagem operacional frente à China: o modelo chinês de financiamento, execução rápida, poucos condicionantes, contraste com a burocracia europeia, normas ambientais e sociais mais rígidas, o que torna a Europa menos ágil em muitos mercados de desenvolvimento.
Cenários de risco – e consequências para a Europa
Eixos de vulnerabilidade
- Infraestrutura crítica: portos, ferrovias, terminais de carga, redes de dados que tenham participação ou dependência chinesa podem tornar-se pontos de influência externa. Por exemplo, se um porto importante em solo europeu for dominado por empresas chinesas, isso abre caminho para efeitos como controle logístico, tecnologia ou até segurança.
- Normas e padrão tecnológico: Se a China conseguir impor seus próprios padrões técnicos ou padrões de dados em países ou infraestruturas que também afetam a Europa, isso pode criar “ilhas normativas” que contornam o modelo ocidental.
- Divisão interna da UE: Países que veem vantagens imediatas em projetos chineses (investimentos, empregos, infraestrutura) podem divergir da posição de Bruxelas, enfraquecendo a ação conjunta do bloco. A China busca, segundo estudos, justamente explorar esse tipo de fissura no interior da UE.
Impactos potenciais
- Redução da autonomia estratégica da Europa (industrial, tecnológica, logística).
- Aumento de dependência externa ou de “quem paga, manda”.
- A erosão da influência da UE em sua “zona de vizinhança” e numa ordem internacional baseada em valores (governança, transparência, direitos) se a China conseguir avançar com seu modelo.
- Fragilidade da coesão europeia — se países centrais e periféricos da UE tiverem políticas divergentes, a eficácia do bloco será menor e ficará vulnerável a estratégias de “dividir para conquistar”.
Diretrizes para uma estratégia europeia — cinco pilares fundamentais
Dado o panorama, quais linhas‐mestras a Europa precisa adotar para responder com eficácia à expansão da BRI e à ambição chinesa? A seguir, cinco pilares estratégicos.
Coesão e abordagem comum da UE
- A UE deve reforçar sua política comum de conectividade, infraestrutura e investimento externo, de modo que os Estados‑membros ajam em sinergia e evitem regulação divergente que seja explorada por contratos bilaterais com a China.
- Isso significa definir critérios comuns de participação em projetos de infraestrutura (transparência, padrões, envolvimento local, financiamento claro). Já foi observado que a ausência desses critérios fragiliza a resposta europeia.
Mobilização de investimentos e infraestrutura alternativa
- É crucial que a UE intensifique o acompanhamento e execução do Global Gateway, mobilizando recursos reais — públicos + privados — com rapidez e foco.
- Projetos em África, Ásia e regiões de interesse estratégico devem ser implementados de forma visível, para que a oferta europeia apareça como alternativa credível à China.
- Atenção especial para áreas de infraestrutura digital, logística, energia, onde a China está ativa.
Proteção da infraestrutura crítica e cadeias de valor
- A Europa precisa ter uma política robusta de screening e regulação para investimentos externos, especialmente em setores estratégicos (portos, ferrovias, redes de dados, energia).
- Além disso, reduzir dependências de fornecedores externos únicos (por exemplo chineses) em componentes críticos. Isso também evita a armadilha de dependência tecnológica ou logística.
Normas, governança e narrativa de valores
- A resposta europeia não é apenas sobre “investir mais”, mas sobre oferecer uma visão com valores — transparência, sustentabilidade, direitos humanos, boa governança. Isso ajuda a diferenciar a oferta europeia da chinesa.
- Ao mesmo tempo, a narrativa internacional da Europa deve enfatizar que conectividade não significa dependência. Como dito no plano da UE: “links, not dependencies”.
Engajamento estratégico com países parceiros e regiões sensíveis
- A Europa deve priorizar parcerias com países que funcionam como “pontos de passagem” ou corredores de conectividade — Balcãs, leste da Europa, Mediterrâneo, Ásia Central.
- Em paralelo, deve ajudar esses países a fortalecerem sua resiliência institucional, transparência e infraestrutura, de modo que não fiquem reféns de ofertas chinesas isoladas que não considerem os interesses europeus.
Conclusão: a Europa não pode assistir de fora
A expansão da BRI e a ambição chinesa de transformar infraestrutura em influência global são realidades cada vez mais palpáveis. A Europa — seja enquanto bloco da UE ou como aglomerado de Estados‑membros — não possui o luxo de permanecer apenas como espectadora ou como receptora passiva dessas dinâmicas.
Se a Europa deixar que a China avance no continente ou nos países vizinhos com projetos que fragilizem a coesão europeia, capturem infraestrutura crítica ou imponham padrões tecnológicos distintos, o preço poderá não ser apenas econômico — será geopolítico.
Por outro lado, a Europa tem ativos importantes: um mercado interno forte, experiência de governança, instituições multilares, capital humano e uma narrativa de valores que pode oferecer alternativas legítimas. A chave está em transformar essa vantagem estrutural em ação concreta e coordenada.
Em última instância, a pergunta que a Europa precisa responder é: quem moldará a conectividade, a infraestrutura, os padrões tecnológicos e logísticos deste continente nas próximas décadas — a Europa, a China ou alguma combinação das duas sob condições que reduzam a autonomia europeia?
Se a resposta for a Europa, é preciso agir agora. Se não, corre‑se o risco de amanhã já estar reagindo a uma ordem definida por outros.

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