Dhaka vive clima de cerco com explosões, lockdown político e a possibilidade de uma condenação histórica que pode redefinir o futuro de Bangladesh.
Bangladesh entra em uma das semanas mais tensas de sua história recente. Às vésperas do veredito no julgamento da ex-primeira-ministra deposta Sheikh Hasina, marcado para segunda-feira, 17 de novembro de 2025, o país vive um ambiente de medo, polarização e violência política crescente.
Hasina, de 78 anos, governa há muito tempo o imaginário político do país. Hoje, porém, aparece no centro de um processo que a acusa de crimes contra a humanidade, por supostamente ter autorizado o uso letal da força contra protestos estudantis em meados de 2024, pouco antes de ser derrubada do poder e buscar exílio na Índia em agosto de 2024.
De líder dominante a ré ausente
Sheikh Hasina comandou Bangladesh por cerca de 15 anos consecutivos, à frente do partido Liga Awami, até ser afastada em meio a uma onda de protestos massivos liderados por estudantes, que denunciavam corrupção, autoritarismo e repressão violenta.
O caso atual concentra-se principalmente na resposta do governo às manifestações de 2024:
- Hasina é acusada de autorizar o uso de força letal contra protestos inicialmente pacíficos;
- As acusações incluem assassinato, tentativa de assassinato, tortura e outros atos desumanos;
- Promotores pedem inclusive a pena de morte, o que intensifica ainda mais a carga política e emocional do julgamento.
O julgamento ocorre in absentia — Hasina permanece em exílio na Índia, longe das câmeras e de aparições públicas, o que alimenta tanto teorias de perseguição política quanto narrativas sobre impunidade e responsabilização.
Lockdown político e ruas em ebulição
Nas ruas de Dhaka e de outras cidades, a disputa judicial se traduziu em confronto físico. O agora proscrito Partido Liga Awami convocou um “lockdown” nacional para protestar contra o julgamento, paralisando setores importantes da economia e do transporte.
Relatos dão conta de um cenário de quase insurreição urbana:
- Explosões de bombas de fabricação caseira em diferentes pontos da capital;
- Ônibus e trens incendiados em atos de sabotagem;
- Ataques contra instituições ligadas ao governo interino, incluindo agências associadas ao atual líder, o Nobel da Paz Muhammad Yunus;
- Fortes confrontos entre simpatizantes de Hasina, grupos rivais e forças de segurança.
Somente em 12 de novembro, autoridades relataram mais de 30 explosões de bombas e vários ataques incendiários a veículos e prédios públicos.
Estado de segurança reforçado
Diante da escalada de violência, o governo interino de Yunus respondeu com um endurecimento significativo da segurança:
- Mais de 400 membros da guarda de fronteira foram deslocados para Dhaka para reforçar a presença militar;
- Checkpoints e barreiras se multiplicaram nas principais vias da capital;
- Reuniões públicas e manifestações foram severamente restringidas, na prática, limitando o direito de reunião de todos os grupos políticos, não apenas da Liga Awami.
Esse clima de “cerco” gera um misto de medo e ressentimento na população. Muitos bangladeshianos temem tanto uma repressão ainda maior quanto uma espiral de violência de rua que fuja totalmente do controle.Justiça, vingança ou ajuste de contas político?
O ponto central da controvérsia é o grau em que o julgamento de Hasina pode ser considerado um processo de justiça de transição ou, ao contrário, um ajuste de contas político conduzido por seus adversários.
Críticos do governo interino argumentam que:
O tribunal especial teria sido moldado num contexto de forte pressão política;
O fato de Hasina ser julgada na sua ausência fragiliza a percepção de devido processo;
A proscrição da Liga Awami e a perseguição a seus quadros cria a impressão de que se trata de uma estratégia para eliminar uma força política histórica do cenário nacional.
Já defensores do julgamento sustentam que:
- Os abusos durante o período em que Hasina governou – especialmente na repressão a protestos – exigem responsabilização;
- Crimes contra a humanidade não podem ficar sem resposta, independentemente da posição política ou do passado da acusada;
- O processo seria uma oportunidade para Bangladesh romper com uma cultura de impunidade das elites políticas.
Na prática, as duas narrativas se sobrepõem a uma realidade: qualquer que seja o veredito, ele terá efeitos profundos e imediatos sobre o equilíbrio de poder interno e a estabilidade institucional do país.
O papel de Muhammad Yunus e a disputa de legitimidade
No centro da reconfiguração política está o governo interino liderado por Muhammad Yunus, economista e Prêmio Nobel da Paz, conhecido mundialmente pelo trabalho com microcrédito. Sua ascensão ao governo, após a queda de Hasina, foi inicialmente vista por alguns setores como uma oportunidade de “reset democrático”.
Contudo, à medida que:
- A Liga Awami foi banida,
- Manifestações foram severamente reprimidas,
- E medidas de segurança excepcionais se tornaram rotina,
a imagem de Yunus passou a ser contestada por parte da população e por simpatizantes de Hasina, que falam abertamente em “regime Yunus” e o acusam de se aproveitar do sistema judicial para consolidar poder.
Impactos regionais e geopolíticos
Bangladesh não é um ator isolado: suas crises internas interessam diretamente a potências regionais como Índia e China, além de organismos internacionais.
Algumas implicações possíveis:
- Índia, que abriga Hasina em exílio, é vista como parte inevitável da equação. Qualquer condenação dura pode complicar ainda mais a relação Daca–Nova Délhi e colocar o governo indiano sob pressão, interna e externa, sobre o grau de apoio ou proteção conferido à ex-primeira-ministra.
- China, importante parceira econômica de Bangladesh, observa com atenção a estabilidade do país, crucial para rotas comerciais, investimentos em infraestrutura e competição de influência no Sul da Ásia.
- Instituições financeiras e organizações multilaterais acompanham o risco de rupturas econômicas, sobretudo em setores sensíveis como o têxtil, que depende de estabilidade mínima para manter exportações e cadeias de produção.
Uma deterioração prolongada pode afastar investimentos e agravar a vulnerabilidade social de um país já marcado por desigualdades profundas.
Cenários possíveis após o veredito
A decisão de 17 de novembro de 2025 é vista como um ponto de inflexão. Analistas políticos, tanto dentro quanto fora de Bangladesh, apontam três cenários básicos:
- Condenação severa (incluindo pena de morte)
- Provável intensificação dos protestos e do lockdown político;
- Risco de que parte da oposição migre para formas mais extremas de ação;
- Possível endurecimento ainda maior do aparato de segurança do governo interino.
- Condenação sem pena máxima
- Permite ao governo alegar que houve responsabilização, mas pode ser lida como gesto para tentar conter a revolta;
- Ainda assim, não elimina o risco de novos protestos, já que o processo em si é visto como politicamente contaminado pelos apoiadores de Hasina.
- Absolvição ou decisão considerada branda
- Seria interpretada como derrota política para o governo interino, fortalecendo a narrativa de vitimização de Hasina;
- Poderia abrir espaço para negociações políticas, mas também para disputas internas dentro da própria oposição.
Em todos os cenários, a questão central permanece: como reconstruir alguma forma de consenso institucional depois de anos de polarização e violência?
O que está em jogo para Bangladesh
Mais do que a trajetória de uma única líder, o julgamento de Sheikh Hasina coloca em jogo:
- A credibilidade do sistema judicial diante da sociedade;
- A capacidade de Bangladesh de promover justiça sem mergulhar no revanchismo;
- A possibilidade de um novo pacto político que não dependa exclusivamente da ascensão ou queda de figuras carismáticas.
Se o processo for percebido como instrumento de vingança política, o país corre o risco de aprofundar um ciclo de instabilidade, onde cada mudança de poder abre espaço para novos julgamentos, proibições e perseguições. Se, por outro lado, conseguir equilibrar responsabilização e respeito a garantias básicas, Bangladesh pode dar um passo – ainda que conturbado – na direção de instituições mais sólidas.
Por ora, porém, o cenário é de incerteza. Com bombas improvisadas nas ruas, tropas nas esquinas e uma ex-primeira-ministra aguardando o veredito a partir do exílio, o país vive à beira de uma encruzilhada histórica.
Conclusão
O veredito marcado para 17 de novembro de 2025 funcionará como um divisor de águas para Bangladesh — não apenas para Sheikh Hasina e seus apoiadores, mas para a própria saúde das instituições do país. Se for percebido como justo e transparente, poderá abrir caminho para um debate nacional sobre responsabilização e reformas; se for visto como instrumento de vingança política, é provável que aprofunde a polarização, estimule ciclos de protesto e repressão e fragilize ainda mais a confiança pública no Judiciário.
As próximas 48–72 horas serão decisivas: decisões judiciais, movimentos das forças de segurança, reações domésticas e posicionamentos de atores regionais (especialmente Índia e China) irão determinar se Bangladesh consegue limitar a crise a um choque político — ainda que grave — ou se desliza para um período prolongado de instabilidade política e econômica. Para a sociedade civil e para a comunidade internacional, o desafio imediato é pressionar por garantias de devido processo, proteção aos direitos humanos e canais de mediação política que reduzam o risco de violência.
Em última instância, o que está em jogo vai além de uma condenação ou absolvição: trata-se da capacidade do país de construir mecanismos institucionais que privilegiem soluções políticas estáveis em vez de expulsões e purgas periódicas. Qualquer resposta sustentável exigirá compromissos — de atores internos e externos — para promover diálogo, proteger liberdades civis e reconstruir a confiança entre rivais políticos. Sem isso, o veredito de 17 de novembro poderá ser apenas mais um capítulo de uma longa sequência de rupturas.

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