A guinada autoritária da Geórgia e o impasse com a União Europeia

Bandeira da União Europeia tremula em rua de Tbilisi, na Geórgia, em 15 de novembro de 2025.
Uma bandeira da União Europeia tremula em uma rua de Tbilisi, Geórgia, em 15 de novembro de 2025. Foto: REUTERS/Irakli Gedenidze.

A Geórgia já foi descrita como “aluno modelo” pós-soviético: reformas econômicas rápidas, eleições competitivas, mídia vibrante e uma sociedade civil fortemente pró-Ocidente. Nos últimos anos, porém – e sobretudo desde as eleições parlamentares de 2024 –, o país entrou numa trajetória de endurecimento autoritário que hoje preocupa diretamente a União Europeia (UE), da qual a Geórgia é candidata formal desde 2023.

Relatórios recentes da UE e de institutos de pesquisa apontam um quadro de retrocesso democrático, perseguição à oposição, fragilização de instituições de controle e aproximação estratégica com Rússia e China.

A seguir, um panorama analítico desse processo, seus atores centrais e as implicações para o futuro da Geórgia e da parceria com a UE.

De “história de sucesso” à candidata “apenas no nome”

Após a independência da União Soviética, a Geórgia passou por fases turbulentas, mas conseguiu construir uma imagem externa de país reformista, sobretudo após a Revolução das Rosas (2003). Reformas anticorrupção, modernização do Estado e alinhamento com a OTAN e a UE projetaram Tbilisi como um caso de sucesso democrático no Cáucaso.

Essa narrativa, porém, foi se desgastando ao longo da década de 2010, com a ascensão do partido Sonho Georgiano (Georgian Dream – GD), fundado pelo bilionário Bidzina Ivanishvili. Críticos afirmam que, a partir de 2012, começou um processo gradual de concentração de poder, captura de instituições e uso seletivo da justiça, que se intensificou fortemente depois da invasão russa à Ucrânia em 2022.

O marco simbólico mais recente dessa deterioração é a avaliação da própria UE: em 2025, um relatório europeu classificou a Geórgia como “candidata apenas no nome”, apontando “sério retrocesso democrático” e instituições debilitadas, especialmente o Judiciário, visto como subordinado ao Executivo.

Endurecimento interno: leis repressivas e eleições contestadas

Leis de “agentes estrangeiros” e repressão à sociedade civil

Um dos pontos de ruptura foi a adoção da chamada “lei de agentes estrangeiros” em 2024, inspirada em legislações usadas pela Rússia para controlar ONGs e mídia independente. A norma exige que organizações que recebam uma parcela significativa de recursos externos se registrem como “agentes de influência estrangeira”, estigmatizando-as e abrindo espaço para perseguição administrativa e judicial.

Essa lei se somou a outras medidas restritivas que:

  • ampliam poderes policiais em contextos de protestos;
  • dificultam o financiamento de partidos e ONGs;
  • permitem a vigilância e o monitoramento de opositores sob pretexto de “segurança nacional”.

Organizações de direitos humanos e a própria UE interpretam esse pacote como parte de uma estratégia de “neutralização” da sociedade civil pró-europeia, que historicamente desempenhou papel central nas mobilizações a favor da integração com a UE e a OTAN.

Eleições de 2024: alegações de fraude e crise de legitimidade

As eleições parlamentares de outubro de 2024, vencidas pelo Sonho Georgiano em seu quarto mandato consecutivo, são descritas por análises independentes como profundamente problemáticas. Relatos apontam:

  • uso abusivo da máquina estatal;
  • intimidação de eleitores;
  • manipulação de mídia;
  • irregularidades no processo de apuração.

O resultado foi contestado por amplas parcelas da oposição, que anunciaram boicote ao Parlamento. Uma parte dos partidos manteve o boicote por meses, enquanto outra, como o For Georgia, decidiu mais tarde ocupar seus assentos, argumentando que era preciso “retomar espaço político” num cenário de crescente autoritarismo.

O boicote, somado à repressão nas ruas, alimentou uma crise de legitimidade: de um lado, um governo que se apresenta como defensor da estabilidade e da paz; de outro, uma sociedade civil e uma oposição fragmentadas, mas majoritariamente pró-UE, questionando a imparcialidade das regras do jogo.

Oposição sob ataque: prisões, exílios e ameaça de banimento

O traço mais alarmante do atual momento georgiano é a perseguição sistemática de figuras da oposição, jornalistas críticos e ativistas.

Prisões e processos politizados

Relatos de ONGs e da mídia mostram um padrão nítido:

  • líderes de partidos pró-UE presos ou sob processos considerados politicamente motivados;
  • ativistas jovens acusados de crimes graves por participação em protestos;
  • jornalistas investigativos enquadrados em leis de “extremismo” ou “ataque a autoridades” após confrontos em manifestações.

Casos emblemáticos incluem:

  • ativistas pró-UE presos durante protestos contra a suspensão do processo de adesão à UE;
  • jornalistas como Mzia Amaglobeli detidos sob acusações desproporcionais, vistos por entidades como Transparência Internacional como punição por expor corrupção governamental;
  • políticos como Zurab Japaridze, líder liberal pró-UE, detido e posteriormente encarcerado com base em procedimentos amplamente criticados como instrumentos de intimidação política.

Caminho para o sistema de partido hegemônico

Em 2025, o Sonho Georgiano deu um passo ainda mais drástico ao anunciar que pediria à Corte Constitucional a proibição formal dos três principais partidos de oposição, sob a alegação de que representariam ameaça à ordem constitucional.

Na prática, isso significaria:

  • transformar a Geórgia em um quase sistema de partido único, com oposição apenas residual ou pró-governo;
  • esvaziar qualquer competição real em futuras eleições;
  • aprofundar a ruptura com os padrões democráticos exigidos pela UE para avançar no processo de adesão.

Analistas e ex-diplomatas georgianos definem a situação como estar “a cinco minutos de uma ditadura de partido único”.

Desmonte institucional e a questão do combate à corrupção

Outro sinal de retrocesso é a decisão do governo de extinguir o Escritório Anticorrupção, criado em 2022 por recomendação da UE como parte das condições para o status de candidato.

O Executivo argumenta que se trata de “otimização de recursos” e que suas funções serão absorvidas pelo órgão de auditoria estatal. Contudo:

  • mais de 50 ONGs georgianas alegam que o escritório nunca foi verdadeiramente independente e vinha sendo usado para intimidar organizações críticas;
  • na avaliação delas, em vez de reforçar o combate à corrupção, a medida enfraquece os mecanismos de fiscalização do poder e consolida o controle governamental sobre o sistema de integridade pública.

A abolição do órgão ocorre justamente quando Bruxelas intensifica críticas ao uso das instituições para perseguir opositores e ativistas, reforçando a percepção de que a prioridade do governo é a autopreservação, não reformas estruturais.

Geopolítica do retrocesso: entre Moscou, Pequim e Bruxelas

A crise interna da Geórgia está diretamente ligada à sua posição geopolítica.

A narrativa do “risco de guerra com a Rússia”

O Sonho Georgiano justifica o endurecimento político e a hostilidade a parte da oposição com o argumento de que seus críticos estariam tentando arrastar a Geórgia para uma guerra com a Rússia, replicando o cenário ucraniano.

Esse discurso se apoia em fatores reais:

  • a memória traumática da guerra de 2008 com a Rússia, que resultou no controle russo sobre Abecásia e Ossétia do Sul;
  • a presença militar e política russa no entorno georgiano;
  • a dependência econômica parcial em relação ao mercado russo e ao fluxo de cidadãos russos que migraram após 2022.

Contudo, críticos afirmam que essa retórica é usada para deslegitimar qualquer oposição, associando automaticamente forças pró-UE a agendas “pró-guerra” ou “anti-nacionais”.

Economia em crescimento, mas investimento ocidental em queda

Paradoxalmente, a economia georgiana tem crescido, beneficiando-se da chegada de empresas e capital russos desviados por sanções, além de fluxos migratórios que dinamizam setores como tecnologia e serviços.

Ao mesmo tempo:

  • investimentos estratégicos ocidentais diminuem, diante do risco político e da percepção de retrocesso institucional;
  • projetos-chave, como o desenvolvimento de infraestrutura portuária voltada ao comércio com a Europa, são revistos ou colocados em segundo plano, com maior espaço para atores chineses em licitações e contratos.

O resultado é uma reorientação gradual da Geórgia, que, sem assumir formalmente uma ruptura com o Ocidente, aproxima-se de Moscou e Pequim na prática, sobretudo em termos econômicos e de modelo político.

UE diante de um dilema estratégico

Bruxelas vive um impasse diante da Geórgia. Por um lado:

  • a sociedade georgiana é amplamente pró-europeia, com pesquisas mostrando apoio consistente à integração com a UE;
  • o país tem papel estratégico no Cáucaso, corredor energético e de transporte entre Europa e Ásia.

Por outro:

  • o governo atual adota um curso claramente antiliberal e anti-pluralista;
  • o congelamento ou recuo no processo de adesão pode ser explorado por Moscou como “prova” de que o Ocidente não é um parceiro confiável.

O Parlamento Europeu já afirmou publicamente que a Geórgia não pode aderir à UE enquanto seu governo mantiver o rumo autoritário atual, enfatizando que o apoio europeu está voltado sobretudo ao povo georgiano, não ao governo.

Esse dilema se traduz em uma política de:

  • pressão seletiva (sanções a indivíduos ligados ao governo, críticas públicas, congelamento de certos processos);
  • combinada com apoio reforçado à sociedade civil, mídia independente e comunidades locais pró-UE.

Riscos e cenários: para onde pode caminhar a Geórgia?

O rumo político da Geórgia hoje é visto como altamente incerto, mas alguns cenários se desenham no curto e médio prazo.

Consolidação do autoritarismo competitivo

Caso a proibição das principais forças de oposição se concretize, o país tende a migrar de um sistema de “autoritarismo competitivo” – no qual ainda há eleições, mas sem condições justas – para algo mais próximo de um regime hegemônico, onde:

a alternância de poder é praticamente impossível;

o Parlamento se torna predominantemente pró-governo;

a independência do Judiciário e dos órgãos de fiscalização é ainda mais erodida.

Nesse cenário, a UE tenderia a manter a Geórgia congelada em um limbo: candidata nominal, mas sem avanço real – semelhante a outros casos de “estagnação democrática” nos Balcãs, porém com o agravante da forte influência russa.

Reação social e pressão internacional

Outra possibilidade é que a combinação de:

  • mobilização interna (protestos, campanhas cívicas, imprensa independente);
  • e pressão externa (sanções pessoais, condicionamentos econômicos);

leve o governo a recuar parcialmente, liberando presos políticos, suspendendo tentativas de banimento partidário ou revisando leis repressivas.

Esse caminho dependeria:

  • do grau de unidade da oposição, hoje fragmentada;
  • da capacidade da UE e de parceiros como EUA de coordenar uma linha clara: punição a retrocessos, recompensa a reformas concretas.

Mudança gradual ou ruptura nas urnas

A médio prazo, se ainda houver espaço para competição eleitoral real, é possível que:

  • uma coalizão mais ampla e pragmática da oposição consiga, em futuras eleições, canalizar o descontentamento social e oferecer uma alternativa estável, evitando tanto a captura estatal quanto aventuras radicais;
  • ou, em cenário mais tenso, uma combinação de crise econômica, repressão excessiva e ruptura entre elites leve a uma transição abrupta, com risco de instabilidade interna.

Por que a situação da Geórgia importa para a UE (e para além dela)

A crise georgiana vai além de um caso “local” no Cáucaso. Ela é sintoma de duas tendências mais amplas:

  1. Disputa de modelos políticos
    Rússia e China promovem, direta ou indiretamente, um modelo que combina autoritarismo político com abertura econômica seletiva. A Geórgia, outrora vitrine do caminho pró-UE, hoje ilustra como esse modelo pode seduzir elites que buscam manter poder sem controles democráticos.
  2. Desgaste do “soft power” europeu
    Quando um país candidato consegue recuar de padrões democráticos básicos sem perder, ao menos de imediato, benefícios econômicos importantes, envia-se a mensagem de que os custos do retrocesso podem ser administráveis. Isso fragiliza o poder de atração da UE também em outros cenários, como nos Balcãs Ocidentais e na vizinhança oriental.

Conclusão

A Geórgia vive um momento decisivo. O país que, por anos, simbolizou a possibilidade de uma transição democrática bem-sucedida no espaço pós-soviético hoje se encontra à beira de um regime de partido hegemônico, com oposição acuada, instituições minadas e um governo mais confortável em dialogar com Moscou e Pequim do que com Bruxelas.

Para a União Europeia, a questão central já não é apenas “se” a Geórgia pode aderir, mas “qual Geórgia” chegará à porta de entrada do bloco: uma sociedade pró-europeia sufocada por um regime autoritário, ou um país que, apesar dos recuos, seja capaz de retomar o caminho de reformas, pluralismo e Estado de Direito.

O desfecho dependerá da relação de forças entre governo e sociedade, da habilidade da oposição em se reorganizar, e da capacidade da UE de transformar sua preocupação em incentivos e pressões concretas – evitando tanto o abandono quanto a complacência diante do retrocesso democrático em um parceiro estratégico.

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