Sentença de morte contra Sheikh Hasina expõe feridas abertas em Bangladesh

Sheikh Hasina em um evento oficial, usando um lenço tradicional, com expressão séria, simbolizando o fim de seus 15 anos no poder em Bangladesh.
Sheikh Hasina, ex-primeira-ministra de Bangladesh, durante um evento oficial em Dhaka. Após cerca de 15 anos no poder, ela enfrenta um julgamento que pode marcar definitivamente o fim de sua era política.

A ex-primeira-ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina, foi condenada à morte em ausência por um tribunal especial em Dhaka por crimes contra a humanidade relacionados à repressão a protestos estudantis em 2024. A decisão, proferida em 17 de novembro de 2025 pelo Tribunal Internacional de Crimes (ICT) de Bangladesh, mergulha o país em uma nova fase de incerteza política e jurídica, ao mesmo tempo em que reacende o debate sobre justiça, vingança e uso político dos tribunais.

Hasina, que governou o país por cerca de 15 anos consecutivos antes de ser derrubada e fugir para a Índia, chamou o julgamento de “farsa” e “politicamente motivado”. Organizações de direitos humanos, por sua vez, reconhecem a gravidade dos crimes, mas criticam o processo e rejeitam o uso da pena de morte.

Do massacre estudantil à queda do governo

A acusação contra Hasina está diretamente ligada à repressão violenta aos protestos de 2024, conhecidos como “Revolução de Julho” ou massacre de julho. As manifestações começaram como mobilização estudantil contra o sistema de cotas em empregos públicos e rapidamente se transformaram em uma revolta de escala nacional contra o governo.

Entre julho e início de agosto de 2024:

  • forças de segurança — incluindo polícia, batalhões armados e unidades especiais — foram usadas de forma maciça contra manifestantes;
  • houve uso de munição real, veículos blindados e armamento pesado em áreas urbanas densamente povoadas;
  • o número de mortos ultrapassou 1.000 pessoas, segundo estimativas oficiais de saúde, e pode ter chegado a 1.400 mortos, de acordo com relatório do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (OHCHR).

A repressão chocou o país e a comunidade internacional. Em agosto de 2024, em meio a uma escalada de protestos, greves e atos de violência política, Hasina renunciou e deixou o país rumo à Índia, abrindo caminho para um governo interino liderado pelo Nobel da Paz Muhammad Yunus.

O julgamento: crimes contra a humanidade e pena de morte em ausência

O caso “Chief Prosecutor vs. Sheikh Hasina & Others” foi aberto no ICT-1 em 1º de junho de 2025, com Hasina sendo julgada em ausência. As acusações incluem:

  • assassinato e tentativa de assassinato;
  • tortura e outros atos desumanos;
  • uso de força letal indiscriminada contra manifestantes;
  • falha em impedir e punir abusos cometidos por forças sob seu comando.

Em 17 de novembro de 2025, o tribunal:

  • considerou Hasina culpada de crimes contra a humanidade e a sentenciou à morte;
  • também condenou o ex-ministro do Interior Asaduzzaman Khan à pena de morte;
  • aplicou pena de prisão a outro acusado que cooperou com a Justiça.

O ICT é um tribunal doméstico criado originalmente para julgar crimes da guerra de independência de 1971. Durante os anos de governo Hasina, ele já havia sido alvo de críticas de especialistas e organizações internacionais, que apontavam violações de garantias de defesa, interferência política e uso seletivo da Justiça. Agora, ironicamente, a ex-chefe de governo passa a ser julgada por essa mesma corte.

“Julgamento político” ou justiça para as vítimas?

Hasina, falando a partir do exílio, classificou a sentença como “pré-determinada” e motivada por vingança política, acusando o governo interino de usar o tribunal para eliminá-la da vida pública.

Já o governo e parte das famílias das vítimas defendem a decisão como um marco de justiça:

  • o chefe do governo interino, Muhammad Yunus, declarou que o veredito mostra que “ninguém está acima da lei”;
  • familiares de manifestantes mortos comemoraram nas imediações do tribunal, vendo a sentença como reconhecimento oficial da responsabilidade do antigo governo.

No entanto, organizações de direitos humanos adotaram uma postura crítica e cautelosa:

  • a Human Rights Watch afirmou que a condenação, embora reconheça a gravidade do massacre, foi proferida ao fim de um processo com sérias falhas de imparcialidade e garantias de defesa;
  • a Anistia Internacional destacou que a pena de morte não é compatível com a busca genuína de justiça e reparação, e pediu sua revogação.

Assim, a sentença se torna um símbolo ambíguo: para uns, justiça; para outros, instrumento político travestido de legalidade.

Um país aparentemente calmo, mas profundamente dividido

No dia seguinte à decisão, Bangladesh acordou em aparente normalidade. Dhaka e outras grandes cidades mantiveram atividades rotineiras, mesmo diante do chamado da Liga Awami — partido de Hasina — para uma paralisação nacional.

A calma nas ruas, porém, contrasta com a polarização política:

  • de um lado, apoiadores de Hasina denunciam “perseguição” e acusam o governo interino de tentar reescrever a história recente;
  • de outro, estudantes, opositores e parte da sociedade civil insistem que a impunidade pelos crimes de 2024 seria inaceitável.

Esse clima de divisão se conecta com outros episódios recentes, como a demolição do antigo museu-residência de Sheikh Mujibur Rahman, pai de Hasina e fundador de Bangladesh, por manifestantes em 2025 — um gesto altamente simbólico de ruptura com o “culto à família” que marcou a política do país por décadas.

O papel da Índia: abrigo incômodo e pressão por extradição

Depois de deixar Bangladesh, Hasina buscou refúgio na Índia, onde permanece em algum tipo de estadia temporária. Dhaka já reiterou oficialmente o pedido de extradição após a sentença de morte, mas Nova Délhi mantém posição cautelosa e não se comprometeu com o envio da ex-líder de volta ao país.

Para a Índia, a questão é delicada em vários níveis:

  • entregar Hasina poderia ser visto como endosso a um processo judicial contestado por organismos internacionais;
  • recusar a extradição pode gerar atritos com o governo interino de Bangladesh, com impacto em segurança fronteiriça, comércio e cooperação regional;
  • o caso se desenrola em um contexto em que a Índia tenta projetar imagem de estabilidade e liderança no Sul da Ásia.

A política de Nova Délhi, portanto, tende a ser a de ganhar tempo, mantendo o discurso de respeito ao devido processo legal e evitando decisões definitivas no curto prazo.

A nova arquitetura de poder em Bangladesh

A sentença contra Hasina ocorre em meio a uma transição ainda incompleta. O governo interino, liderado por Muhammad Yunus, assumiu com a promessa de:

  • reconstruir instituições,
  • reformar o sistema político e eleitoral,
  • e preparar eleições gerais previstas para 2026.

Ao mesmo tempo, a utilização de um tribunal com histórico controverso — o ICT — para julgar a ex-líder levanta questionamentos:

  1. Risco de precedente
    Se tribunais especiais forem percebidos como ferramentas contra adversários do momento, qualquer governo futuro poderá temer ser alvo de processos semelhantes.
  2. Credibilidade internacional
    Críticas de observadores internacionais sobre falta de garantias de defesa podem enfraquecer a imagem de Bangladesh em fóruns de direitos humanos e impactar relações com parceiros ocidentais.
  3. Estabilidade interna
    Uma parte significativa do eleitorado ainda é ligada à Liga Awami e à figura de Hasina. Uma sentença final de morte, sem consenso mínimo sobre a lisura do processo, pode manter viva a sensação de injustiça e alimentar ciclos de conflito político.

Justiça de transição ou justiça seletiva?

Em teoria, o julgamento de crimes cometidos por um governo contra sua população poderia ser um passo em direção a um modelo de justiça de transição, no qual um país encara seu passado de violência estatal para tentar romper com padrões de impunidade.

No caso de Bangladesh, porém, alguns elementos alimentam o receio de justiça seletiva:

  • o ICT foi continuamente criticado por não cumprir padrões internacionais de julgamentos justos, incluindo limitações à defesa e interferência política;
  • a pena capital, por si só, já é condenada amplamente por organismos de direitos humanos como incompatível com o caráter de justiça restaurativa e com o princípio de não-repetição;
  • o fato de Hasina ser julgada em ausência limita seu direito a se defender, ainda que ela própria tenha decidido permanecer no exílio.

Na prática, a percepção sobre o caso se divide em três grandes correntes:

  1. Setores que veem a sentença como justiça exemplar
    Para familiares de vítimas, parte da oposição e muitos estudantes, nada menos do que uma condenação severa seria aceitável diante do número de mortos e da brutalidade da repressão.
  2. Setores que enxergam vingança política
    A base da Liga Awami e simpatizantes de Hasina interpretam o julgamento como o desfecho de uma campanha para apagar sua trajetória política e destruir seu legado.
  3. Setores que defendem responsabilização, mas rejeitam o processo
    Organizações de direitos humanos e alguns analistas defendem que Hasina deve, sim, ser responsabilizada, mas dentro de um modelo de justiça que respeite plenamente o devido processo legal e não recorra à pena de morte.

O que esperar daqui para frente?

No curto prazo, vários fatores devem moldar o desdobramento do caso:

  • Limitações de recurso: Hasina, condenada em ausência, só poderá recorrer formalmente se for detida e apresentada ao tribunal em Bangladesh, o que torna a Índia um ator central nessa equação.
  • Clima interno: se a aparente calma nas ruas se mantiver, o governo interino tende a argumentar que conseguiu controlar a crise; qualquer explosão de violência, porém, pode reabrir o debate sobre a legitimidade do tribunal.
  • Pressão internacional: condenações públicas da pena de morte e críticas ao processo podem levar Dhaka a repensar a execução da sentença, ainda que mantenha o veredito de culpa.

No médio e longo prazo, a questão central será se Bangladesh conseguirá:

  • punir responsáveis por crimes de Estado sem transformar tribunais em instrumentos de retaliação política;
  • construir instituições judiciais com credibilidade suficiente para serem aceitas por diferentes campos políticos;
  • realizar eleições de 2026 em um ambiente menos polarizado, no qual a violência de 2024 seja reconhecida, mas não explorada apenas como arma retórica.

Conclusão: um veredito que define mais do que o destino de uma líder

A sentença de morte contra Sheikh Hasina é, ao mesmo tempo:

  • uma resposta — ainda que controversa — ao massacre de centenas ou milhares de manifestantes em 2024;
  • um teste para a capacidade de Bangladesh em conciliar responsabilização e Estado de Direito;
  • e um espelho das divisões profundas de um país que tenta se reinventar depois de anos de governo concentrado em uma figura dominante.

Mais do que decidir o futuro político de uma ex-primeira-ministra, o caso Hasina coloca em jogo a forma como Bangladesh vai encarar a sua própria história recente de violência de Estado — e se esse acerto de contas será instrumento de reconciliação ou combustível para novos ciclos de conflito.

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