A África do Sul se prepara para sediar, nos dias 22 e 23 de novembro, em Joanesburgo, a primeira cúpula do G20 realizada no continente africano, um marco simbólico para a presença do continente na governança econômica global. Enquanto líderes das maiores economias do mundo se organizam para discutir crescimento sustentável, financiamento para o desenvolvimento e novas formas de cooperação com a África, o governo sul-africano enfrenta desafios domésticos significativos: inflação em leve alta, economia estagnada e a necessidade de se proteger da crescente “arma de politização do comércio” em um sistema internacional cada vez mais fragmentado e menos multilateral.
G20 em Joanesburgo: significado histórico e político
A realização da cúpula do G20 em Joanesburgo é, antes de tudo, um gesto político de grande peso:
- É a primeira vez que o grupo se reúne em solo africano.
- Confirma a África do Sul como ponto de entrada institucional do continente em um clube que reúne as maiores economias desenvolvidas e emergentes.
- Sinaliza que temas africanos – desenvolvimento, clima, dívida, comércio – não podem mais ser discutidos à margem, mas no centro da mesa global.
De acordo com o Conselho Europeu, a agenda do encontro inclui:
- Crescimento sustentável,
- Financiamento para o desenvolvimento,
- Novos formatos de cooperação entre grandes economias e países africanos.
Na prática, isso significa discutir como:
- transformar promessas de apoio à África em fluxos reais de recursos;
- facilitar o acesso de países africanos a financiamento mais barato;
- integrar melhor o continente às cadeias globais de valor, sem que ele permaneça apenas como fornecedor de matérias-primas.
A África do Sul como ponte entre o G20 e o continente africano
Como anfitriã da cúpula, a África do Sul tenta se afirmar como ponte política e diplomática entre o G20 e o restante do continente:
- É a única economia africana membro pleno do grupo.
- Tem tradição de atuar como porta-voz de demandas africanas em fóruns multilaterais, defendendo reformas na governança global, inclusive em instituições financeiras internacionais.
Pretória busca equilibrar seu papel de:
- Interlocutora africana – levando temas como dívida, financiamento climático e industrialização para o centro da agenda do G20.
- Parceira múltipla – mantendo laços estreitos com União Europeia, Estados Unidos, China, Índia e outros sem se colocar totalmente no campo de ninguém.
Esse posicionamento é ainda mais sensível no atual contexto de rivalidade entre grandes potências, em que países do Sul Global são frequentemente pressionados a “escolher lados”.
O contexto interno: inflação sob controle, mas economia fraca
Enquanto se apresenta ao mundo como palco de um megaevento diplomático, a África do Sul lida com seus próprios dilemas econômicos.
De acordo com análise publicada pela Polity.org.za, a inflação sul-africana subiu para cerca de 3,6% em outubro, na base anual, ainda dentro da meta do banco central.
Isso gera um cenário ambíguo:
- Não há crise inflacionária: o índice segue em patamar gerenciável, o que sugere um ambiente relativamente estável de preços.
- Mas o crescimento econômico continua fraco, com histórico de baixo dinamismo, alto desemprego e problemas estruturais – como crises recorrentes de energia e gargalos de infraestrutura.
Essa combinação coloca o Banco de Reserva da África do Sul diante de um dilema:
- Manter juros elevados demais pode pressionar ainda mais o crescimento;
- Reduzi-los agressivamente, em um ambiente global de incerteza, pode acender alertas sobre estabilidade e fluxo de capitais.
Ou seja, o G20 chega em um momento em que o país precisa equilibrar a narrativa externa de liderança e estabilidade com uma realidade doméstica delicada.
“Arma de politização do comércio”: o alerta sul-africano
Um dos debates mais estratégicos em torno da posição sul-africana é o risco da chamada “weaponization of trade”, ou “arma de politização do comércio”.
Em entrevista destacada pelo site Semafor, o enviado especial sul-africano alerta para o perigo de que o comércio internacional seja cada vez mais usado como instrumento de pressão política, por meio de:
- sanções, embargos e tarifas punitivas;
- restrições sobre exportação de tecnologias e minerais críticos;
- exigência de alinhamentos políticos explícitos como condição para acesso a mercados.
Para a África do Sul, esse movimento é particularmente preocupante porque:
- o país depende de mercados diversos para suas exportações – de minerais a produtos agrícolas e manufaturados;
- qualquer fragmentação acentuada das trocas globais em blocos rivais (por exemplo, um eixo ocidental versus um eixo sino-russo) tende a pressionar países intermediários a “tomar partido”, sob pena de perder acesso privilegiado a um lado ou a outro.
O recado sul-africano é claro:
Se o comércio se torna arma política, economias como a sul-africana – e, por extensão, muitas africanas – correm o risco de virar danos colaterais em uma disputa que não controlam.
Diversificar parceiros sem perder autonomia
Diante desse cenário, a estratégia defendida por autoridades e analistas é a de diversificação de parcerias, sem abrir mão da autonomia:
- reforçar relações com União Europeia e Estados Unidos, que seguem importantes como destino de exportações, fonte de tecnologia e financiamento;
- aprofundar a cooperação com China, Índia e outros emergentes, incluindo parcerias em infraestrutura, energia e indústria;
- explorar laços intra-africanos, usando instrumentos como a Zona de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA) para ampliar o comércio dentro do próprio continente.
A ideia é evitar cair na armadilha de depender excessivamente de um único parceiro, seja ele qual for.
No contexto do G20, isso se traduz em:
- defender um sistema comercial menos dominado por sanções unilaterais e tarifas políticas;
- reforçar o papel de instituições e regras multilaterais que ofereçam alguma previsibilidade a países em desenvolvimento.
O que a África do Sul quer tirar do G20 em Joanesburgo?
Além do simbolismo de sediar a cúpula, a África do Sul tem alguns objetivos práticos:
Compromissos concretos em financiamento para o desenvolvimento
Pretória quer:
- ampliar acesso a linhas de crédito mais baratas para projetos de infraestrutura, energia limpa e adaptação climática;
- apoiar propostas que tornem o sistema financeiro internacional menos oneroso e punitivo para países com alto nível de dívida.
Mais espaço para as demandas africanas
Ao hospedar o encontro, o governo sul-africano tenta:
- garantir que temas como dívida, industrialização, transição energética justa, segurança alimentar e tecnológica apareçam de forma central nos comunicados da cúpula;
- articular uma posição comum com outros países africanos para mostrar que o continente não é apenas “objeto” de políticas, mas ator com demandas próprias.
Blindar-se da “weaponization of trade”
A mensagem sobre evitar a “arma de politização do comércio” é, ao mesmo tempo:
- um recado às grandes potências para moderarem o uso do comércio como ferramenta de coerção;
- uma forma de legitimar a busca sul-africana por equilíbrio e autonomia em suas parcerias.
Riscos e oportunidades para Pretória
Oportunidades
- Vitrine global: o G20 reforça a imagem da África do Sul como player relevante na diplomacia econômica e política.
- Ganhos de capital político: se a cúpula produzir compromissos relevantes sobre desenvolvimento e comércio, Pretória pode sair fortalecida internamente e externamente.
- Agenda africana em destaque: ao ser o primeiro anfitrião africano, o país tem a chance de consolidar o continente como ator indispensável em debates sobre clima, finanças e comércio.
Riscos
- Resultados aquém das expectativas: se o encontro terminar com declarações genéricas e pouca ação concreta, a percepção de “grande espetáculo, pouco conteúdo” pode dominar.
- Pressões geopolíticas: tensões entre grandes potências podem contaminar o clima da cúpula, dificultando consensos.
- Críticas domésticas: se problemas como energia e segurança aparecerem durante o evento, a oposição pode acusar o governo de priorizar imagem externa sobre reformas internas.
O que observar nos próximos dias
Alguns pontos-chave para acompanhar:
- O teor do comunicado final do G20: haverá referência clara à necessidade de evitar a “weaponization of trade”?
- Anúncios específicos de financiamento para a África ou para projetos em solo sul-africano;
- Sinais de que o país conseguiu atrair investimentos ou acordos bilaterais relevantes à margem da cúpula;
- O impacto da cúpula na percepção interna sobre a condução da política econômica e externa do governo.
Conclusão
Às vésperas do G20 em Joanesburgo, a África do Sul se encontra em uma posição delicada e estratégica ao mesmo tempo.
Como anfitriã da primeira cúpula do grupo em solo africano, o país assume o papel de vitrine do continente para o mundo – e, também, de porta-voz de questões centrais como desenvolvimento, dívida, clima e reformas na governança global. Ao mesmo tempo, precisa lidar com desafios econômicos internos, como inflação moderada, crescimento fraco e vulnerabilidades estruturais.
O alerta contra a “arma de politização do comércio” sintetiza a essência da sua preocupação: em um sistema internacional cada vez menos cooperativo e mais fragmentado, países como a África do Sul não querem ser forçados a escolher entre blocos rivais, nem ser vítimas colaterais de sanções, tarifas e embargos usados como ferramentas políticas.
Se conseguir transformar a cúpula em compromissos concretos e em uma narrativa sólida de defesa do multilateralismo, da diversificação de parcerias e da voz africana, a África do Sul terá dado um passo importante para se afirmar como ator-chave de um mundo em transição – e não apenas palco de disputas alheias.

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