França trava acordo UE–Mercosul: entre agricultores, clima e geopolítica

Vista interna do Parlamento Europeu em Estrasburgo, simbolizando as negociações do acordo entre União Europeia e Mercosul.
Parlamento Europeu, em Estrasburgo, onde avança o debate sobre o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul.

A França voltou a travar, na prática, a conclusão do acordo comercial entre União Europeia e Mercosul – e isso diz muito mais do que apenas um “não” pontual. Mostra o choque entre três agendas que hoje se cruzam em Bruxelas e em Paris: proteção do setor agrícola europeu, ambição climática e disputa geopolítica com EUA e China.

Em que pé está o acordo UE–Mercosul?

O acordo UE–Mercosul começou a ser negociado no fim dos anos 1990, passou por idas e vindas, e teve um “acordo de princípio” anunciado em 2019. Mas, desde então, emperrou em duas frentes principais:

  • Ambiental: críticas à falta de garantias robustas contra desmatamento e violações climáticas, em especial ligadas à Amazônia.
  • Política interna europeia: resistência de governos e parlamentos nacionais, com destaque para a França, além da pressão contínua de agricultores e ONGs.

Em 2024 e 2025, a Comissão Europeia tentou destravar o processo, oferecendo “garantias adicionais” e mecanismos de salvaguarda para setores sensíveis. Em setembro de 2025, a Comissão aprovou o texto e encaminhou o acordo para os Estados-membros, apresentando-o como um grande passo para diversificar parceiros e reduzir dependência da China e dos EUA.

Mesmo assim, a França reiterou agora que o texto continua “inaceitável”. Segundo porta-voz do governo francês, Paris exige:

  • “Cláusulas espelho” (mirror clauses): exportadores do Mercosul deveriam cumprir normas ambientais, sanitárias e de bem-estar animal equivalentes às impostas aos produtores europeus;
  • Mecanismos de salvaguarda: possibilidade de bloquear importações se um setor europeu for “desestabilizado”;
  • Reforço de controles para garantir que produtos do Mercosul realmente respeitem as normas europeias.

Ou seja: França não recusa o acordo em tese, mas recusa este acordo, nestas condições.

Por que a França trava o acordo?

Pressão dos agricultores

A França é o maior produtor de carne bovina da UE e um dos grandes beneficiários da Política Agrícola Comum (PAC). O país vive uma sequência de protestos agrícolas – parte de um movimento mais amplo de mobilizações de agricultores na Europa, que criticam concorrência externa, aumento de custos e exigências ambientais mais rígidas.

Os agricultores franceses temem:

  • Concorrência de baixo custo: produtores do Brasil, Argentina e outros países do Mercosul conseguem produzir carne, soja, açúcar e etanol com custos muito menores do que os europeus;
  • Diferença de normas: pesticidas proibidos na UE continuam sendo usados em parte do Mercosul; exigências de bem-estar animal e rastreabilidade são menos rígidas em vários casos;
  • Quotas adicionais de importação: o acordo prevê aumento significativo das cotas de carne bovina, aves, açúcar e etanol do Mercosul com tarifas reduzidas ou nulas.

Para sindicatos agrícolas franceses, isso é sinônimo de “concorrência desleal”: o produtor europeu cumpre mais regras, paga mais caro e, no fim, compete com produtos mais baratos que chegam ao mercado europeu com menores exigências.

Política interna e cálculo eleitoral

O governo francês governa sob forte pressão social desde o ciclo de protestos de 2023–2024, em que os agricultores se tornaram atores políticos decisivos. Eles bloquearam estradas, pressionaram o governo, e um dos alvos constantes foi justamente o acordo UE–Mercosul.

Para o governo em Paris:

  • Assinar o acordo “como está” significaria comprar mais um conflito com a base rural, em um contexto em que o voto do interior e dos agricultores é disputado intensamente.
  • Ao endurecer o discurso, a França se apresenta como “defensora da agricultura europeia” e também reforça uma imagem de guardiã dos compromissos climáticos.

Não à toa, mesmo quando o presidente Emmanuel Macron ensaia um discurso mais “aberto” ao acordo, o governo volta a frisar publicamente que o texto ainda não é aceitável. Isso mantém a margem de negociação com Bruxelas e com o Mercosul, mas acalma parte da base doméstica.

A agenda ambiental

A dimensão ambiental é central:

  • Relatórios encomendados pelo próprio governo francês apontaram que o acordo, sem condicionantes robustos, poderia estimular o desmatamento, especialmente para abertura de pasto para gado e expansão de soja.
  • ONGs europeias e movimentos climáticos denunciam que o tratado troca “carne barata e carros” por aumento de emissões de CO₂ e pressão sobre a Amazônia e outros biomas.

Assim, a França usa a retórica climática não só como argumento de política externa, mas também como ferramenta de legitimação interna: é mais fácil convencer a opinião pública a bloquear o acordo em nome da “proteção do clima” e da “coerência com o Acordo de Paris” do que apenas pela defesa corporativa de um setor.

O que está em jogo para o Brasil e o Mercosul?

Ganhos esperados

Para o Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), o acordo é visto como uma oportunidade estratégica:

  • Acesso ampliado ao mercado europeu para produtos agrícolas: carne bovina, aves, açúcar, etanol, soja e derivados, suco de laranja, entre outros;
  • Redução de tarifas para produtos industrializados exportados à UE, inclusive automóveis, autopeças, calçados e alguns produtos químicos;
  • Previsibilidade regulatória para investimentos europeus nos países do bloco, especialmente em infraestrutura, energia e indústria verde.

Para o Brasil em particular:

  • A UE é um dos principais parceiros comerciais, e um acordo formal de livre comércio poderia consolidar essa relação em bases mais estáveis;
  • Há interesse em atrair mais investimento europeu em transição energética, hidrogênio verde, indústrias de baixo carbono e tecnologia;
  • Politicamente, um acordo bem-sucedido reforçaria a imagem do Brasil como ator relevante nas cadeias globais de valor, e não apenas como fornecedor de commodities.

Riscos e críticas internas no Mercosul

Mas não é um consenso absoluto na região. Críticos apontam:

  • Risco de reprimarização: reforço da posição do Mercosul como exportador de produtos primários e importador de bens manufaturados e de maior valor agregado;
  • Exposição maior de setores industriais menos competitivos à concorrência europeia;
  • Pressão ambiental: sem políticas robustas de controle, o aumento das exportações agropecuárias pode incentivar desmatamento, conflitos fundiários e violações de direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais.

Ainda assim, para a maioria dos governos do bloco, os benefícios econômicos e geopolíticos superam os riscos, desde que haja contrapartidas europeias em financiamento climático e transferência tecnológica.

UE–Mercosul no tabuleiro geopolítico

Europa entre EUA e China

Para Bruxelas, o acordo com o Mercosul tem uma dimensão estratégica clara:

  • Diversificar fontes de matérias-primas e alimentos em um cenário de tensões comerciais com os EUA e crescente rivalidade com a China;
  • Oferecer uma alternativa europeia à presença econômica chinesa cada vez maior na América do Sul, especialmente em infraestrutura, energia e tecnologia;
  • Reforçar o discurso da UE como defensora de uma ordem internacional baseada em regras – inclusive em comércio.

É por isso que países como Alemanha e Espanha continuam defendendo o acordo e pressionando para que ele avance, argumentando que bloqueá-lo seria “um presente” para China e EUA na disputa por influência na região.

O papel do Brasil

O Brasil se coloca como:

  • Líder regional e principal negociador no Mercosul, com peso econômico e político muito superior aos demais parceiros;
  • Interlocutor essencial em clima, por conta da Amazônia, do potencial de energia limpa e da centralidade nas discussões climáticas globais.

Ao mesmo tempo, o país tenta usar o acordo UE–Mercosul como carta de negociação:

  • Para atrair mais financiamentos e investimentos em transição energética e proteção florestal;
  • Para pressionar a UE a reconhecer esforços internos de combate ao desmatamento;
  • Para sinalizar ao mercado que o Brasil está integrado a grandes cadeias globais, algo importante para investidores.

Agricultores X clima X comércio: o nó político

A declaração francesa de que o acordo ainda é “inaceitável” escancara um conflito que não é apenas técnico, mas profundamente político: como conciliar abertura comercial, proteção ambiental e segurança econômica de grupos domésticos poderosos.

Hoje, na Europa, esses vetores se chocam assim:

  1. Agricultores exigem proteção contra importados mais baratos e regras assimétricas (no uso de agrotóxicos, bem-estar animal, rastreabilidade etc.);
  2. Ambientalistas cobram coerência com metas climáticas e combate ao desmatamento;
  3. Setores industriais e exportadores defendem o acordo para ampliar mercados e reduzir custos;
  4. Governos nacionais precisam equilibrar tudo isso olhando para eleições, pressões de rua e compromissos internacionais.

A França tem sido o país que melhor “condensa” essas tensões:

  • Tem um setor agrícola forte e politicamente mobilizado;
  • Quer manter a imagem de liderança climática;
  • Ao mesmo tempo, não pode se isolar dentro da UE, sob risco de ser vista como bloqueadora crônica.

Daí a insistência em “cláusulas espelho” e salvaguardas, que funcionariam como um filtro: permitir o acordo, mas condicionando importações a padrões mais próximos dos europeus.

O que acontece agora?

A reafirmação francesa de que o acordo é “inaceitável” não significa que tudo acabou, mas indica:

  1. Dificuldade de ratificação: o acordo precisa de aprovação do Parlamento Europeu e de uma maioria qualificada no Conselho da UE. A oposição aberta de um país central, somada a resistências em outros Estados, torna o caminho muito mais tortuoso.
  2. Pressão por reabrir pontos sensíveis: Paris quer mudanças concretas em regras agrícolas e ambientais. Se a Comissão ceder demais, corre o risco de desagradar o Mercosul, que também tem limites políticos internos.
  3. Risco de “acordo zumbi”: tecnicamente finalizado, mas politicamente paralisado – um texto que existe, mas não entra em vigor.

Para o Brasil, o impasse traz alguns efeitos:

  • Incerteza para exportadores, que seguem operando sob o regime atual de tarifas e quotas;
  • Perda de tempo estratégico: enquanto o acordo não anda, outros países e blocos avançam em pactos comerciais, redesenhando cadeias globais;
  • Espaço para barganha: o governo brasileiro pode usar esse bloqueio como argumento para cobrar mais compromissos europeus em financiamento climático e desenvolvimento sustentável.

Cenários possíveis

Cenário 1 – Concessões mútuas e aprovação adiante

A UE aceita reforçar cláusulas espelho, mecanismos de salvaguarda e controles ambientais; o Mercosul, por sua vez, aceita algum endurecimento das condições para determinados produtos ou um cronograma mais longo.

  • A França declara “vitória política” ao dizer que protegeu agricultores e o clima.
  • O Mercosul vende a narrativa de que entrou no maior acordo comercial da UE, mantendo espaço para suas exportações.

É o cenário preferido por quem vê o acordo como peça estratégica na disputa geopolítica.

Cenário 2 – Fragmentação do acordo

A UE tenta separar o capítulo comercial do restante do acordo de associação, aprovando apenas o que está sob competência exclusiva da União, para contornar resistências de parlamentos nacionais.

  • Politicamente controverso, pois é visto por críticos como uma manobra para driblar o controle democrático.
  • Pode gerar contestação jurídica e novas batalhas políticas dentro da UE.

Cenário 3 – Impasse prolongado (“acordo zumbi”)

Nada avança de fato: o texto existe, mas é sucessivamente adiado, enquanto discursos de “renegociação” se arrastam.

  • O Mercosul busca outros parceiros e acordos, reforçando laços com China, países asiáticos e eventualmente outros blocos;
  • A UE passa a ser vista na região como ator menos ágil e previsível.

Conclusão

A reafirmação francesa de que o acordo UE–Mercosul é “inaceitável” funciona como um termômetro das contradições que atravessam a integração comercial contemporânea: ao mesmo tempo que Estados e empresas buscam mercados e previsibilidade, sociedades demandam coerência climática e proteção de setores vulneráveis. O impasse revela que não se trata apenas de tarifas ou cotas, mas de conciliar modelos de desenvolvimento diferentes — e de traduzir isso em regras verificáveis que convençam agricultores, ambientalistas e legisladores. Para o Mercosul, o desafio é claro: mostrar que é possível ampliar exportações sem abrir mão de mecanismos efetivos de proteção ambiental e de governança. Para a UE, especialmente para a França, a exigência é equilibrar solidariedade intrabloco com ambições externas sem sacrificar sua própria coesão política. Se as partes conseguirem transformar exigências domésticas em compromissos verificáveis e financiamento concreto para a transição, há espaço para um acordo mutuamente útil; caso contrário, corre-se o risco de ver o tratado permanecer como um texto político — relevante na retórica, mas incapaz de produzir efeitos práticos.

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