Na África do Sul, país considerado por muitos como uma das democracias‑referência do continente pós‑apartheid, está em curso uma viragem preocupante: segundo uma pesquisa recente, aproximadamente 49% da população indicou preferência por um regime militar em vez da democracia. Essa marca revela uma crise de legitimidade e confiança nas instituições democráticas sul‑africanas — resultado direto de um conjunto de fatores que vão desde o desemprego crônico até à criminalidade, passando por falhas de infraestrutura e corrupção endêmica.
Este artigo oferece uma análise detalhada desse fenômeno: quais são as causas, que atores estão em jogo, quais as implicações para a democracia sul‑africana e o que isso significa para o futuro político do país.
Panorama factual
- De acordo com a reportagem do Afrobarometer acompanhada pelo jornal The Times, a preferência por um governo militar saltou para 49% no levantamento mais recente – em comparação com 28% há cerca de três anos.
- O mesmo levantamento assinala que 70% dos sul‑africanos estão insatisfeitos com a forma como a democracia está a funcionar no país.
- Os principais problemas identificados pelos respondentes são: desemprego elevado (mencionado por mais da metade), criminalidade, falhas no abastecimento de água, energia e infraestrutura em geral, e corrupção governamental.
- O partido dominante, African National Congress (ANC), no poder desde 1994, aparece numa situação de desgaste político e simbólico, com muitos cidadãos dizendo não se identificarem com qualquer partido.
Causas estruturais
Desemprego e desigualdade
O desemprego crônico na África do Sul alimenta o descontentamento. Mesmo após décadas de democracia, muitos sul‑africanos sentem que a liberdade política pouco transformou nas suas vidas quotidianas. Essa lacuna entre as expectativas democráticas e os resultados concretos alimenta apelos por “algo diferente” — inclusive regimes mais autoritários que prometam ordem e emprego.
Segurança e criminalidade
A percepção de insegurança — seja pela criminalidade violenta, seja pela falha no funcionamento da justiça — mina a crença de que a democracia está a oferecer proteção aos cidadãos. O argumento “se o sistema democrático não me garante segurança, talvez outro sistema sim” cresce.
Falhas institucionais e corrupção
Quando eleitores percebem que os seus representantes ou partidos se comportam de forma corrupta, ou que o aparato estatal é incompetente ou ineficaz, a confiança diminui. No caso sul‑africano, o legado de escândalos (como o “state capture”) reforça essa desilusão.
A frustração com a democracia como forma de governo
Apesar de largamente apoiada no papel, a democracia exige que governos entreguem resultados. Quando isso não acontece, o suporte a alternativas aumenta. O relatório da Afrobarometer mostra que muitos sul‑africanos estariam dispostos a abdicar de eleições se um governo não‑eleito pudesse entregar segurança, emprego e habitação.
Atores e dinâmicas políticas
- O ANC, então partido‑hegemonia, enfrenta crescente desgaste: a sua longa permanência no poder abre espaço para acusações de inércia, corrupção e desconexão com a população jovem ou marginalizada.
- A oposição, fragmentada, ainda não conseguiu capitalizar totalmente essa frustração em alternativas claras e viáveis. Isto contribui para que parte da sociedade olhe para além da democracia de representação — para modelos mais autoritários.
- O papel das forças de segurança e da instituição militar ganha relevo quando a narrativa pública começa a ver a força (ou a promessa de ordem) como caminho preferível à instabilidade percebida.
- A juventude e as camadas menos favorecidas socialmente parecem mais dispostas a considerar formas não‑democráticas de governo na esperança de resultados diferentes.
Implicações para a democracia sul‑africana
Risco de legitimidade
Se quase metade da população prefere governo militar, a própria lógica de representatividade democrática fica fragilizada. A eleição e o mandato popular perdem valor simbólico.
Pressão para mudanças institucionais ou de regime
Essa insatisfação pode conduzir a duas vias: reformas profundas e eficazes da democracia — para restaurar confiança — ou deriva autoritária, em que se tenta impor ordem em detrimento da liberdade.
Repercussões regionais
Como uma das democracias mais visíveis do continente, o declínio da credibilidade democrática da África do Sul reverbera além‑fronteiras. Outros países podem ver no seu trajeto um precedente ou alerta.
Ambiente para intervenção militar ou populista
A abertura a regimes militares ou “fortes lideranças” sinaliza que a sociedade poderia legitimar intervenções mais autoritárias, o que enfraquece o papel dos direitos civis e das liberdades políticas.
Cenários futuros
- Reformulação democrática: o ANC ou outra força política assume compromisso sério com combate à corrupção, melhoria da infraestrutura, criação de empregos e segurança; a confiança é restaurada gradualmente.
- Deriva autoritária: o aumento da preferência por governo militar gera incentivos para que atores estatais ou militares ganhem influência política, potencialmente à custa das liberdades civis.
- Estagnação desmoralizante: persistem os problemas — desemprego, crime, falta de confiança — e a democracia sobrevive mas sem entregar, aumentando ainda mais o descontentamento e polarização.
Conclusão
A marca de quase metade da população sul‑africana dizendo preferir “regime militar” à democracia sinaliza uma crise séria de confiança política e de governança. Não se trata apenas de um número estatístico, mas de um alerta: quando a democracia não entrega em termos concretos — emprego, segurança, infraestrutura — ela perde legitimidade perante aqueles que esperam mudanças reais.
Para a África do Sul, o desafio é duplo: restaurar a crença nas instituições democráticas e garantir melhorias palpáveis na vida quotidiana das pessoas. Em caso contrário, abre‑se caminho para modelos de governo que prometem ordem à custa da liberdade — algo que o legado democrático do continente e do país em particular não pode absorver num momento de fragilidade global dos regimes representativos.

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