China publica livro branco sobre controle de armas e tenta reforçar imagem de potência “responsável”

Míssil balístico de médio alcance DF-26 exibido após desfile militar em Pequim, China
Míssil balístico de médio alcance DF-26 é exibido após desfile militar em Pequim, simbolizando a modernização das forças estratégicas chinesas

A China deu um novo passo na disputa pela narrativa sobre segurança global ao publicar o livro branco “China’s Arms Control, Disarmament, and Nonproliferation in the New Era”. O documento apresenta a visão oficial de Pequim sobre controle de armas, desarmamento e não proliferação, em um momento de tensões com Estados Unidos, Japão e outros países asiáticos.

Mais do que um texto técnico, o livro branco é uma peça política: busca mostrar a China como ator responsável na ordem internacional, ao mesmo tempo em que responde às acusações de que o país estaria ampliando rapidamente suas capacidades militares e nucleares.

O que é um livro branco e por que ele importa?

Na diplomacia chinesa, livros brancos são documentos oficiais usados para:

  • explicar políticas internas e externas;
  • sinalizar prioridades estratégicas;
  • tentar moldar a percepção global sobre a atuação da China.

No campo de controle de armas, um livro branco desse tipo cumpre vários objetivos ao mesmo tempo:

  1. Definir publicamente a doutrina chinesa
    Pequim procura deixar claro como enxerga temas como armas nucleares, mísseis, armas convencionais avançadas, espaço e ciberespaço.
  2. Responder às críticas internacionais
    Ao se colocar como defensora do desarmamento e da não proliferação, a China tenta reequilibrar o debate, no qual costuma ser acusada de opacidade, expansão militar acelerada e modernização nuclear agressiva.
  3. Enviar recados diplomáticos
    O documento também fala para públicos específicos: Washington, aliados dos EUA na Ásia (como Japão e Coreia do Sul), países em desenvolvimento e organismos multilaterais.

Assim, o livro branco é tanto uma declaração de princípios quanto uma ferramenta de propaganda estratégica.

A narrativa central: China como potência “moderada e responsável”

O eixo do documento é a tentativa de construir a narrativa de que a China:

  • apoia o desarmamento nuclear gradual e equilibrado;
  • é firmemente contrária à proliferação de armas de destruição em massa;
  • respeita obrigações internacionais em tratados de que é parte;
  • utiliza sua força militar com “moderação” e apenas em caráter defensivo.

O texto costuma insistir em alguns pontos-chave:

  • a China manteria uma doutrina de “não primeiro uso” de armas nucleares, prometendo não ser a primeira a usar esse tipo de armamento em qualquer conflito;
  • o seu arsenal nuclear seria limitado em comparação ao de outras grandes potências;
  • qualquer modernização militar seria apresentada como resposta a “ameaças externas” e não como ambição expansionista.

Na prática, porém, essa narrativa é alvo de desconfiança por parte de muitos países, que veem com preocupação o ritmo de modernização do Exército Popular de Libertação, o aumento do número de ogivas nucleares e a ampliação de capacidades de mísseis de longo alcance, espaço e ciber.

Mensagem aos Estados Unidos: responsabilidade compartilhada

Uma parte implícita, mas central, do livro branco é o recado direcionado aos Estados Unidos. O documento tende a enfatizar que:

  • a estabilidade estratégica não depende só da China, mas também de Washington;
  • os EUA seriam responsáveis por desequilíbrios, ao expandir sistemas de defesa antimísseis, alianças militares e presença armada perto das fronteiras chinesas;
  • qualquer avanço em desarmamento exigiria concessões recíprocas, e não apenas cobranças em relação a Pequim.

Nesse ponto, a China busca inverter a lógica frequente no discurso ocidental, que a apresenta como principal fator de risco. Ao adotar uma linguagem de “corresponsabilidade”, Pequim tenta se colocar no mesmo patamar dos EUA como potência que “assume seu papel” na preservação da estabilidade global.

Recado para a Ásia: disputas regionais e imagem internacional

O livro branco também fala, indiretamente, para vizinhos asiáticos preocupados com a ascensão militar chinesa:

  • Japão e Coreia do Sul, aliados dos EUA, observam com atenção as capacidades chinesas em mísseis, marinha e espaço;
  • países do Sudeste Asiático têm preocupações com a militarização do Mar do Sul da China;
  • a questão de Taiwan é, cada vez mais, um ponto sensível na equação regional de segurança.

Ao se apresentar como ator comprometido com controle de armas e não proliferação, a China tenta:

  • reduzir a percepção de que sua ascensão representa um risco incontrolável;
  • argumentar que são as alianças lideradas pelos EUA – como presença militar em bases, exercícios conjuntos e sistemas antimísseis – que aumentam tensões;
  • conquistar simpatia de países que preferem não se alinhar totalmente a Washington nem a Pequim.

Mesmo assim, na prática, muitos desses vizinhos tendem a interpretar o livro branco com cautela, vendo-o mais como instrumento de comunicação estratégica do que como prova concreta de moderação.

Desarmamento e não proliferação: onde a China quer se diferenciar

O documento também tenta reforçar a posição chinesa em temas de não proliferação, como:

  • armas nucleares;
  • armamentos químicos e biológicos;
  • tecnologias sensíveis de mísseis e vetores.

A China procura se diferenciar em três frentes:

  1. Como potência nuclear “responsável”
    Destaca sua política de não primeiro uso e afirma que não busca paridade numérica com os arsenais de EUA ou Rússia, mas sim uma “capacidade de dissuasão suficiente”, sem entrar em corrida armamentista descontrolada.
  2. Como defensora de acordos internacionais
    Reforça seu apoio a regimes como o de não proliferação nuclear e outros mecanismos multilaterais, ao passo que critica ações unilaterais de certos países e utiliza saídas de tratados como prova de “irresponsabilidade” alheia.
  3. Como parceira do Sul Global
    Apresenta-se como parceira de países em desenvolvimento na construção de capacidades pacíficas, por exemplo em energia nuclear civil, ao mesmo tempo em que defende mecanismos de controle para evitar proliferação militar.

Esse discurso é pensado para dialogar com países que desejam acesso a tecnologia e energia sem abrir mão de compromissos internacionais.

Críticas e desconfianças: o que o livro branco não resolve

Apesar da retórica cuidadosa, o livro branco dificilmente dissipará, por si só, as desconfianças existentes. Alguns pontos sensíveis permanecem:

  • Transparência limitada:
    A China continua divulgando poucos dados detalhados sobre números exatos de ogivas, estoques de mísseis e planos de expansão de longo prazo.
  • Modernização acelerada:
    Observadores internacionais apontam que o ritmo de modernização nuclear e convencional é muito superior ao que o discurso de “arsenal limitado” sugere.
  • Ambiguidade em alguns teatros de operação:
    No Mar do Sul da China, em torno de Taiwan e em certas fronteiras terrestres, a postura chinesa é considerada assertiva e, em alguns casos, coercitiva, o que contrasta com a imagem de potência moderada.
  • Tensões tecnológicas:
    Espaço, ciberespaço, inteligência artificial e novas armas hipersônicas são áreas onde o grau de transparência é ainda menor, aumentando a sensação de competição estratégica opaca.

Assim, o livro branco ajuda a organizar e divulgar a narrativa oficial chinesa, mas não elimina o núcleo de preocupação de rivais e vizinhos.

A disputa pelo “capital moral” em segurança global

No fundo, o texto faz parte de uma disputa maior: quem pode reivindicar o papel de guardião da estabilidade internacional?

  • A China procura acumular capital moral, apresentando-se como potência comprometida com regras, controle de armamentos e solução pacífica de conflitos.
  • Os Estados Unidos, por sua vez, argumentam que a expansão militar chinesa, especialmente no Indo-Pacífico, representa uma ameaça à ordem baseada em regras e à segurança de aliados.
  • Outros atores, como União Europeia, Rússia e potências regionais asiáticas, observam essa disputa tentando preservar espaço para suas próprias agendas.

O livro branco entra nesse jogo como uma peça de comunicação estratégica: ele organiza os argumentos que diplomatas chineses levarão a fóruns como ONU, conferências de desarmamento e reuniões de segurança regional.

Conclusão: documento técnico, gesto político

O livro branco “China’s Arms Control, Disarmament, and Nonproliferation in the New Era” é, ao mesmo tempo, um documento técnico e um gesto político. Ele sistematiza a visão oficial de Pequim sobre controle de armas, desarmamento e não proliferação, mas principalmente busca reconfigurar a narrativa sobre o papel da China na segurança global.

Para o público interno, reforça a ideia de que o país é uma potência responsável, cercada por ameaças e pressionada a defender sua soberania. Para o público externo, tenta mostrar que Pequim não é um ator imprevisível, mas sim alguém que reivindica espaço nas mesas de negociação, sob condições que considera mais equilibradas.

A tensão entre discurso e prática, contudo, permanece. A forma como a China agir nos próximos anos — no ritmo de modernização militar, na gestão de crises regionais e na disposição de negociar acordos concretos — dirá se o livro branco será lembrado como expressão de uma mudança real de postura ou como mais um capítulo da guerra de narrativas em um mundo cada vez mais competitivo e polarizado.

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