O presidente da Coreia do Sul, Lee Jae Myung, embarcou em uma viagem de cerca de dez dias por Emirados Árabes Unidos, Egito, África do Sul e Turquia, combinando agenda econômica, energética e diplomática. É a primeira grande turnê de Lee pelo Oriente Médio e pela África desde que tomou posse, em junho, e sinaliza uma aposta clara: fortalecer laços com o Sul Global como eixo estruturante da política externa sul-coreana.
A viagem coincide com a participação de Lee na cúpula do G20 na África do Sul, o que dá à turnê um peso ainda maior. O objetivo declarado por Seul é diversificar parcerias, garantir segurança energética e consolidar a posição da Coreia do Sul como fornecedor de tecnologia, infraestrutura e defesa para países emergentes.
Itinerário estratégico: do Golfo à África Austral
Segundo o cronograma divulgado pela presidência sul-coreana, a agenda de Lee Jae Myung inclui:
- Emirados Árabes Unidos (EAU) – primeira parada, com foco em energia, investimentos e cooperação em setores de alta tecnologia, defesa e espaço;
- África do Sul – participação na cúpula do G20 em Joanesburgo, além de encontros bilaterais e busca de novos acordos em mineração, indústria e transição energética;
- Egito – negociações para ampliar cooperação em infraestrutura, defesa, energia e projetos ligados ao Canal de Suez;
- Turquia – aprofundamento de parceria em defesa, construção, tecnologia e coordenação política, especialmente no eixo Eurásia-Oriente Médio.
- É uma rota desenhada para conectar três grandes prioridades de Seul:
- Energia e recursos naturais
- Exportação de tecnologia, defesa e infraestrutura
- Reposicionamento político no Sul Global e no G20
Emirados Árabes como “base camp” da Coreia no Oriente Médio
A primeira escala, em Abu Dhabi, já expõe a lógica da viagem. Lee descreveu os Emirados Árabes como um possível “base camp” da Coreia do Sul no Oriente Médio, um ponto de apoio para projetos econômicos e industriais em toda a região.
Na agenda com o presidente emiradense Mohamed bin Zayed Al Nahyan, os dois países discutem:
- expansão de investimentos recíprocos em energia, tecnologia, defesa e indústria pesada;
- maior participação de empresas sul-coreanas em projetos de infraestrutura, energia e construção nos EAU;
- cooperação em tecnologias limpas, espaço e inteligência artificial, áreas que tanto Abu Dhabi quanto Seul querem usar como vitrines globais.
A Coreia do Sul já é parceira importante dos Emirados em energia nuclear e defesa. A nova rodada de encontros busca ampliar esse vínculo, em um momento em que o Golfo tenta diversificar sua economia além do petróleo e a Coreia procura garantir fornecimento estável de energia e contratos para suas grandes conglomerados (chaebols).
Energia e segurança: o elo invisível da agenda
Por trás da linguagem de “cooperação econômica” e “parceria estratégica”, há um elemento central: energia.
- A Coreia do Sul importa a maior parte da energia que consome, e o Oriente Médio é um dos pilares dessa matriz;
- Emirados Árabes e, em menor escala, países africanos produtores de petróleo e gás, são parceiros estratégicos para Seul;
- além de hidrocarbonetos, a Coreia mira também minerais críticos na África – essenciais para baterias, chips, carros elétricos e a transição energética global.
Ao visitar África do Sul e Egito, Lee busca reforçar exatamente essa dupla frente:
- com a África do Sul, o foco passa por mineração, energia e cooperação industrial de longo prazo;
- com o Egito, entra em cena a posição estratégica do país no Mediterrâneo, no Norte da África e no Canal de Suez – corredor essencial para comércio e logística entre a Ásia e a Europa.
Essa dimensão energética não aparece apenas em contratos: ela está diretamente ligada à segurança nacional sul-coreana, em um cenário de incertezas geopolíticas e guerras que pressionam os mercados de energia.
África no radar: comércio, investimentos e política
A viagem de Lee também se encaixa numa tendência recente de Seul: aprofundar laços com o continente africano. Em 2024, a Coreia já havia sediado a primeira Cúpula Coreia–África, com a presença de 48 países africanos, discutindo comércio, investimentos e cooperação em desenvolvimento.
Agora, Lee tenta transformar esse diálogo em:
- contratos concretos em infraestrutura, energia, tecnologia e educação;
- maior presença de empresas sul-coreanas em projetos de construção, transporte, telecomunicações e cidades inteligentes;
- apoio político africano em fóruns internacionais como ONU, G20 e clima, em troca de investimentos e transferência de tecnologia.
A presença de Lee no G20 na África do Sul se conecta a essa agenda: a Coreia tenta falar ao mesmo tempo como país industrializado e parceiro de economias emergentes.
Turquia e Egito: pontes entre Oriente Médio, Europa e África
As paradas em Egito e Turquia reforçam uma dimensão geopolítica importante da viagem:
- o Egito é chave para a segurança do Canal de Suez, rota vital para o comércio sul-coreano;
- a Turquia faz ponte entre Europa, Oriente Médio e Ásia Central, além de ser parceiro importante em defesa, construção e energia.
Para Seul, fortalecer vínculos com Cairo e Ancara significa:
- diversificar rotas de comércio e logística;
- criar oportunidades para conglomerados sul-coreanos em projetos de infraestrutura (portos, rodovias, ferrovias, energia);
- ampliar a coordenação política em temas como Palestina, guerras regionais, segurança marítima e reconstrução pós-conflito em partes do Oriente Médio.
Diplomacia do Sul Global: Coreia quer mais do que ser “aliado dos EUA”
Embora a Coreia do Sul siga firmemente ancorada na aliança com os Estados Unidos, a viagem de Lee Jae Myung mostra um esforço claro de reposicionar o país como ator autônomo em meio às potências.
Essa estratégia inclui:
- dialogar com países do Sul Global que buscam alternativas à disputa direta EUA–China;
- oferecer à África e ao Oriente Médio tecnologia, infraestrutura, financiamento e cooperação, sem a carga de memória colonial que acompanha potências europeias;
- mostrar que Seul pode ser um parceiro confiável em temas como energia limpa, digitalização, educação, saúde e cidades inteligentes.
Na prática, a Coreia tenta ocupar um espaço semelhante ao de Japão e União Europeia, mas com a vantagem de sua imagem de país que “deu certo” em poucas décadas, saindo da pobreza para se tornar uma potência tecnológica.
O que cada lado ganha?
O que a Coreia do Sul busca
- Segurança energética
Garantir contratos de longo prazo em petróleo, gás e, cada vez mais, energia limpa e hidrogênio. - Mercados para suas empresas
Abrir e consolidar espaço para conglomerados de construção, eletrônicos, automóveis, defesa e tecnologia da informação. - Apoio político
Ampliar apoio em votos e posições em fóruns multilaterais, inclusive em pautas como Coreia do Norte, comércio, mudança climática e reforma da governança global. - Projeção de imagem
Reforçar a imagem da Coreia como parceiro confiável, inovador e comprometido com o desenvolvimento sustentável.
O que Oriente Médio e África buscam
- Investimento e tecnologia
Acesso à experiência sul-coreana em infraestrutura, cidades inteligentes, digitalização de serviços públicos, educação técnica e saúde. - Parceria em defesa e segurança
Compra de equipamentos, treinamento e cooperação em segurança marítima, fronteiriça e cibernética. - Diversificação de parceiros
Reduzir dependência de poucos grandes players (EUA, China, Europa), trazendo a Coreia como alternativa ou complemento.
Desafios e limites da ofensiva de Lee
Apesar da ambição, a estratégia de Lee enfrenta alguns desafios:
- Concorrência com China e potências ocidentais: Pequim já tem forte presença em infraestrutura e mineração na África, enquanto EUA e Europa seguem relevantes em energia e finanças.
- Capacidade de execução: transformar anúncios e memorandos em projetos reais demanda tempo, financiamento e estabilidade política em países parceiros.
- Pressões geopolíticas: em um cenário de tensões entre EUA, China, Rússia e potências regionais, a Coreia precisa equilibrar seus movimentos para não se ver empurrada para disputas maiores.
Ainda assim, a escolha de iniciar sua grande ofensiva diplomática justamente pelo Oriente Médio e África indica a percepção de que o centro de gravidade da política global está se deslocando, e Seul não pretende ficar de fora.
Conclusão: uma turnê que mira o futuro energético e político da Coreia do Sul
A viagem de Lee Jae Myung por EAU, Egito, África do Sul e Turquia é um movimento calculado para:
- costurar acordos em energia, tecnologia, defesa e infraestrutura;
- consolidar a presença da Coreia do Sul no Sul Global;
- e ampliar o raio de influência de Seul num mundo cada vez mais fragmentado.
Mais do que visitas protocolares, essa turnê mostra a tentativa da Coreia de se posicionar como ponte entre mundo desenvolvido e economias emergentes – oferecendo uma combinação de know-how tecnológico, capacidade industrial e discurso de parceria “horizontal”.
O sucesso ou fracasso dessa estratégia dependerá, nos próximos anos, de quantos dos anúncios feitos na viagem se transformarão em contratos, investimentos concretos e alianças duradouras. Mas uma mensagem já está clara: a política externa sul-coreana está se tornando mais ativa, mais global e muito mais atenta às oportunidades fora do eixo tradicional Estados Unidos–Europa–Ásia Nordeste.

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