A Coreia do Sul está entrando em uma fase decisiva do seu programa de submarinos de propulsão nuclear – e o contexto é bem mais complexo do que apenas “comprar novos navios”. O debate envolve dissuasão contra Coreia do Norte, competição estratégica com a China, relação com os EUA, possível cooperação com outros aliados e, claro, limites impostos pelo regime de não proliferação nuclear. E, apesar do avanço político recente, ainda há muitas incertezas sobre o formato final do projeto e sobre quem serão, de fato, os parceiros centrais.
De potência exportadora a potência naval
A Coreia do Sul já não é apenas uma potência industrial; é também uma potência naval em construção. O país depende de forma crítica do mar: cerca de 90% de seu comércio exterior passa por rotas marítimas, e sua costa de mais de 2.400 km é cercada por mares disputados, como o Mar Amarelo e o Mar do Leste (Mar do Japão).
Nas últimas décadas, Seul investiu pesadamente numa marinha de águas azuis (blue-water navy), capaz de operar longe de seu litoral. O programa KSS-III, com submarinos convencionais avançados (como as classes Dosan Ahn Changho e Jang Yeongsil, equipadas com baterias de íon-lítio e capacidade de lançar mísseis balísticos de cruzeiro), já colocou o país na elite tecnológica submarina, mesmo sem propulsão nuclear.
O passo seguinte – submarinos de propulsão nuclear – é menos tecnológico do que político e estratégico.
O gatilho estratégico: Coreia do Norte, China e o Indo-Pacífico
Coreia do Norte: ameaça imediata
A racionalidade pública mais evidente é a ameaça vinda do Norte. Pyongyang vem desenvolvendo mísseis balísticos lançados de submarinos (SLBM) e exibiu o submarino “Hero Kim Kun Ok” como núcleo de sua “capacidade nuclear tática” no mar. Embora o navio seja diesel-elétrico, a combinação de furtividade submarina com ogivas nucleares cria um desafio regional direto para Seul.
Para a Coreia do Sul, submarinos de propulsão nuclear dariam:
- Maior tempo em imersão, dificultando detecção;
- Maior raio de ação, incluindo operações em águas profundas do Pacífico;
- Plataforma mais resistente e flexível para mísseis de longo alcance, mesmo que convencionais.
China: o pano de fundo maior
No entanto, o fator que transforma o programa sul-coreano em tema global não é apenas a Coreia do Norte, mas a crescente competição com a China. Pequim expande rapidamente sua marinha, incluindo submarinos nucleares de ataque (SSN) e submarinos lançadores de mísseis balísticos (SSBN), buscando controlar rotas vitais e projetar poder no Indo-Pacífico.
Para Washington, uma Coreia do Sul com submarinos nucleares reforça a malha de dissuasão contra a China, complementando Japão, Austrália e os próprios EUA. Altos oficiais da Marinha norte-americana já vêm descrevendo um futuro submarino nuclear sul-coreano como um “ativo global” para a coalizão que tenta contrabalançar o poder naval chinês.
O salto político: dos debates internos ao aval de Washington
Debates internos e ambição nuclear
Há anos a Coreia do Sul discute, interna e externamente, a expansão de sua capacidade nuclear – seja sob a forma de armas próprias, partilha de armas com os EUA, ou infraestrutura nuclear avançada como submarinos. Estudos recentes ressaltam que, mesmo em setores progressistas, há abertura à ideia de ampliar o peso nuclear da Coreia do Sul na arquitetura de segurança, ainda que sem necessariamente romper com o Tratado de Não Proliferação (TNP).
O aval americano e o “ponto de inflexão” da aliança
O ponto de virada recente foi o sinal verde de Washington para que Seul desenvolva submarinos de propulsão nuclear. Relatos de imprensa descrevem esse aval como um “turning point” na aliança, aproximando ainda mais a Coreia do Sul da estratégia Indo-Pacífico dos EUA.
Em um pacote mais amplo, EUA e Coreia do Sul anunciaram um acordo que envolve:
- Redução de tarifas sobre produtos sul-coreanos;
- Grandes investimentos sul-coreanos na indústria naval e de alta tecnologia dos EUA;
- Cooperação aprofundada em construção naval, inteligência artificial e setor nuclear civil;
- E, como elemento simbólico e estratégico, o compromisso de “avançar na construção de submarinos de propulsão nuclear” pela Coreia do Sul.
Esse movimento foi reforçado por declarações na imprensa norte-americana de que o governo Trump pretende “armar a Coreia do Sul com um submarino nuclear”, elevando a parceria a um novo patamar de integração militar.
O que ainda é incerto: formato, tecnologia e parceiros
Apesar do discurso político de “seguir em frente”, muitas variáveis continuam abertas.
Modelo e transferência tecnológica
Não há, por enquanto, um desenho fechado sobre:
- Qual casco será utilizado (design 100% sul-coreano, adaptação de projeto estrangeiro ou combinação híbrida);
- Origem do reator nuclear naval (tecnologia americana, eventualmente britânica ou francesa, ou desenvolvimento doméstico de longo prazo);
- Escala da frota (alguns cenários falam em um pequeno número inicial – de 3 a 4 unidades – com possibilidade de expansão).
Os EUA, ao abrirem a porta, ainda precisam definir o grau de transferência de tecnologia nuclear naval – algo extremamente sensível, também à luz do precedente AUKUS com a Austrália, que já é alvo de debates e incertezas sobre cronogramas, custos e viabilidade.
AUKUS, Austrália e um possível “AUKUS-plus”
No xadrez regional, há especulação sobre que tipo de arranjo a Coreia do Sul poderá integrar:
- AUKUS-plus ou mecanismo adjacente: AUKUS já enfrenta revisão em Washington e questionamentos sobre sua implementação para a Austrália. A entrada de Seul – ainda que não como membro pleno – poderia ser pensada como expansão da lógica de cooperação submarina nuclear entre aliados, mas isso exigiria redesenhar o acordo e negociar com Londres e Canberra.
- Arranjos bilaterais sob medida: outra possibilidade é um formato mais estritamente bilateral EUA–Coreia do Sul, usando o precedente AUKUS apenas como referência política, mas com desenho jurídico e técnico próprio.
Até agora, não há anúncio formal de inclusão de Seul no AUKUS. O que existe é um movimento paralelo de aprofundar a cooperação EUA–Coreia e, em separado, uma crescente parceria entre Austrália e Coreia do Sul em segurança marítima, que poderia, no futuro, transbordar para o campo submarino.
Outros parceiros potenciais
Também não está totalmente descartada a hipótese de cooperação com potências europeias com forte tradição em submarinos, como França ou Alemanha – sobretudo em partes do projeto (casco, sistemas de combate, sensores), ainda que a parte nuclear em si permaneça sob guarda de EUA/Coreia do Sul. Hoje, porém, essa discussão aparece mais como cenário analítico do que como negociação concreta.
Desafios legais e de não proliferação
A questão nuclear não é apenas militar, é jurídica e diplomática. A transferência de tecnologia para reatores navais, mesmo sem armas nucleares, é sensível dentro do regime de não proliferação.
- TNP e salvaguardas da AIEA: o uso de combustível nuclear para submarinos, especialmente se enriquecido em níveis elevados, pode abrir um precedente para outros países, que poderiam reivindicar direito semelhante sob alegação de “uso pacífico/militar não explosivo”. A experiência ainda incipiente do AUKUS é observada com atenção por países críticos.
- Percepção de escalada: China e Coreia do Norte podem explorar politicamente o programa, acusando EUA e Coreia do Sul de “militarização nuclear” da região, mesmo que os submarinos não levem armas nucleares. Pequim já reagiu de forma moderada, mas deixou claro que segue o assunto com preocupação e pede “cautela” aos envolvidos.
Para Seul, o desafio será insistir que:
- Não pretende adquirir armas nucleares próprias;
- Busca apenas uma plataforma convencionalmente armada, mas com propulsão nuclear para fins de dissuasão e defesa;
- Atende a todas as salvaguardas internacionais.
Impactos regionais: como Japão, Austrália e ASEAN veem o movimento
Japão
Tóquio, embora também discuta seu papel militar ampliado, não tem – por ora – um programa explícito de submarinos nucleares. Um ROK com SSNs pode ser visto simultaneamente como:
- Reforço da frente comum contra China e Coreia do Norte;
- Sinal de que o “padrão nuclear naval” está subindo na região, pressionando o Japão a acelerar seus próprios debates estratégicos.
Austrália
A Austrália, beneficiária do AUKUS, acompanha de perto a discussão sul-coreana. A entrada de Seul nesse “clube” ampliaria o peso dos aliados não nucleares com submarinos nucleares, mas também pode intensificar questões de interoperabilidade, custos e prioridades da indústria naval ocidental. O avanço sul-coreano, com forte base industrial própria, pode inclusive virar concorrência em futuros mercados de exportação de submarinos avançados.
ASEAN e outros países do Indo-Pacífico
Para muitos Estados do Sudeste Asiático, qualquer avanço em capacidades nucleares navais é visto com ambivalência:
- Preocupação com corrida armamentista;
- Mas também interesse em uma presença mais forte de aliados que possam contrabalançar o peso chinês.
Seul tenta equilibrar esse receio, destacando sua contribuição para a segurança de rotas marítimas e missões multinacionais, e não apenas para uma agenda bipolar EUA–China.
Riscos domésticos: custos, prioridades e opinião pública
Submarinos de propulsão nuclear são projetos de décadas, com custos que podem chegar a dezenas de bilhões de dólares ao longo de seu ciclo de vida – construção, infraestrutura de manutenção, segurança nuclear, treinamento de tripulações, descarte do combustível e do reator no fim da vida útil.
Na Coreia do Sul, isso pode abrir frentes de debate:
- Custo de oportunidade: investimentos em submarinos nucleares em vez de outras prioridades militares (defesa aérea, cibersegurança, mísseis de longo alcance) ou sociais (saúde, educação, bem-estar).
- Risco de acidentes: mesmo com um histórico industrial avançado, qualquer incidente nuclear teria impacto devastador na opinião pública e na credibilidade internacional.
- Polarização política: partidos e lideranças podem usar o tema para marcar posição – uns defendendo o salto como símbolo de soberania e prestígio, outros alertando para o risco de excessiva dependência dos EUA e de escalada nuclear na península.
Pesquisas recentes indicam que a população sul-coreana, que já flerta com a ideia de armas nucleares domésticas, pode ver com bons olhos submarinos de propulsão nuclear como “meio-termo” – mais poder dissuasório sem romper formalmente com o TNP.
O que vem pela frente: cenários possíveis
Diante do quadro atual, alguns cenários se destacam:
- Consolidação de um programa nuclear naval bilateral EUA–Coreia do Sul
- Design provavelmente baseado em tecnologia americana;
- Pequena frota inicial (talvez 3–4 submarinos) a partir de meados da década de 2030;
- Forte integração doutrinária com a Marinha dos EUA no Indo-Pacífico.
- Integração parcial em um “ecossistema” tipo AUKUS
- Coordenação em treinamento, doutrina, manutenção e talvez cadeia de suprimentos com Austrália e Reino Unido;
- Acordos separados, mas convergentes, para padronizar operações de submarinos de propulsão nuclear aliados.
- Modelo híbrido com diversificação de parceiros
- Cooperar com EUA na parte nuclear, mas buscar parceiros europeus no casco e em sistemas de combate;
- Transformar a indústria naval sul-coreana em um polo central de tecnologia submarina no Indo-Pacífico, inclusive para exportações.
- Recuo ou reconfiguração
- Sob pressão doméstica ou internacional, Seul poderia desacelerar o programa, manter foco em submarinos convencionais avançados (como os KSS-III com baterias de íon-lítio) e limitar o nuclear a uma fase exploratória.
Conclusão: um programa mais político do que técnico
A opção da Coreia do Sul por submarinos de propulsão nuclear é menos a história de um país que “descobriu uma nova tecnologia” e mais o relato de uma transformação geopolítica em curso:
- Uma península ainda formalmente em guerra com o Norte;
- Uma disputa crescente entre EUA e China por influência marítima e tecnológica;
- Aliados que buscam elevar sua própria capacidade de dissuasão e autonomia, sem quebrar, ao menos por enquanto, as regras do regime de não proliferação.
O projeto avança – com aval americano e ambição sul-coreana – mas ainda é envolto em ambiguidade: não se sabe exatamente qual será o desenho da frota, como se dará a transferência de tecnologia nuclear naval, que papel terá o AUKUS nesse processo e como reagirão Pequim, Pyongyang e o próprio público sul-coreano nos próximos anos.
A única certeza, por ora, é que o debate em torno dos submarinos de propulsão nuclear da Coreia do Sul se tornou um termômetro da nova ordem marítima do Indo-Pacífico – e um indicador de até onde Seul está disposta a ir para garantir sua segurança em um ambiente estratégico cada vez mais tenso e imprevisível.

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