A guerra na Ucrânia voltou a expor, em um intervalo de poucas horas, tanto a brutalidade do campo de batalha quanto as fragilidades da retaguarda política europeia. Na madrugada desta terça-feira (18), um grande ataque russo de drones atingiu a cidade de Dnipro, no centro-leste da Ucrânia, danificando, entre outros alvos, o prédio da emissora pública Suspilne Dnipro e da Rádio Pública de Dnipro. Pouco depois, em Bruxelas e nas capitais europeias, diplomatas e ministros discutiam como manter o fluxo de recursos para Kiev diante do impasse em torno do uso de ativos russos congelados e dos limites orçamentários da própria União Europeia.
O contraste é nítido: enquanto drones e mísseis continuam a redefinir o mapa da destruição em território ucraniano, os governos europeus tentam redesenhar um mapa financeiro que permita sustentar a Ucrânia por meses – e possivelmente anos – de guerra de desgaste.
O ataque a Dnipro: mídia pública como alvo simbólico
Segundo a emissora pública Suspilne, o ataque russo na região de Dnipropetrovsk foi “significativo” e danificou seriamente o prédio que abriga a redação local da TV pública e a Rádio Dnipro. Imagens divulgadas pela própria emissora e por agências internacionais mostram uma estrutura parcialmente destruída, com janelas estilhaçadas, portas arrancadas, teto danificado e fiação exposta, além de focos de incêndio no interior.
Autoridades regionais informaram que drones russos atingiram diferentes pontos da cidade e da região, provocando incêndios, danos a prédios residenciais, infraestrutura urbana e linhas ferroviárias. Pelo menos duas pessoas ficaram feridas, e parte da área chegou a registrar interrupção no fornecimento de energia.
Embora a emissora tenha afirmado que nenhum funcionário estava no prédio no momento do ataque, o alvo tem forte peso simbólico: atacar uma rede pública de comunicação é, na prática, tentar abalar a capacidade da Ucrânia de informar sua própria população e o mundo sobre o andamento da guerra. Em conflitos prolongados, controlar – ou silenciar – a narrativa é um objetivo tão estratégico quanto conquistar terreno.
Ataques sistemáticos à infraestrutura civil
O episódio em Dnipro não é isolado. Desde 2022, a Rússia vem adotando uma estratégia recorrente de atingir infraestrutura civil crítica – energia, transportes, hospitais, e também meios de comunicação. Cidades como Kyiv, Kharkiv e Zaporizhzhia têm sido alvo de campanhas de mísseis e drones que muitas vezes pouco se distinguem, na prática, entre alvos militares e civis.
Essa dinâmica tem dois efeitos principais:
- Pressão psicológica sobre a população civil, desgastando o moral, especialmente em regiões longe da linha de frente.
- Custo econômico crescente, com reconstruções constantes, perda de capacidade produtiva e necessidade permanente de assistência externa – tanto financeira quanto técnica.
É justamente nesse ponto que o debate dentro da União Europeia ganha relevância: quanto tempo o bloco conseguirá bancar uma guerra em que a Ucrânia depende diretamente do apoio ocidental para manter o Estado em funcionamento?
A matemática difícil do apoio europeu à Ucrânia
De acordo com análises recentes, Kiev precisa de algo em torno de 140 bilhões de euros em financiamento nos próximos anos para cobrir tanto gastos militares quanto o funcionamento básico do governo – salários, serviços públicos, previdência, reconstrução emergencial e estabilização macroeconômica.
Durante boa parte do conflito, a União Europeia, os Estados Unidos e outros parceiros conseguiram montar pacotes de ajuda por meio de empréstimos, doações e garantias. Mas, à medida que a guerra se arrasta e os orçamentos nacionais entram em tensão com gastos sociais, transição energética e defesa, as opções ficam mais estreitas.
O “plano A” que emperrou: usar ativos russos congelados
O principal “plano A” discutido em Bruxelas consistia em usar lucros e, em parte, o próprio capital dos ativos russos congelados na Europa para financiar a Ucrânia. Após a invasão em 2022, cerca de 300 bilhões de euros em ativos do Banco Central da Rússia foram bloqueados por países ocidentais, sendo uma parcela relevante mantida em instituições financeiras dentro da UE.
A ideia, politicamente sedutora para muitos governos europeus, é simples: usar o dinheiro do agressor para financiar a vítima. Na prática, porém, surgem vários problemas:
- Questões legais: juristas e bancos centrais alertam que a apropriação direta de ativos estatais pode violar normas de direito internacional e abrir precedentes perigosos.
- Risco para a credibilidade financeira da UE: se investidores estrangeiros passarem a temer que ativos soberanos possam ser confiscados em disputas políticas, a atratividade da Europa como porto seguro pode cair.
- Resistência de alguns Estados-membros: países como a Bélgica – onde se concentram partes significativas desses ativos – exigem garantias jurídicas e compensações para eventuais riscos decorrentes da medida.
O resultado é um impasse: o uso pleno dos ativos russos congelados continua politicamente popular em vários Estados-membros, mas juridicamente arriscado e politicamente contestado em outros.
O “plano B” europeu: empréstimos, orçamentos apertados e vetos nacionais
Diante da dificuldade de avançar com o plano de confiscar ativos russos, a União Europeia começou a discutir um “plano B”: novas linhas de crédito europeias, garantias conjuntas e ampliação de programas já existentes, como o Fundo Europeu de Apoio à Ucrânia, financiados com recursos dos próprios orçamentos nacionais e da UE.
Esse plano, no entanto, enfrenta obstáculos significativos:
- Orçamentos sob pressão
Países europeus já lidam com:- alto endividamento pós-pandemia,
- investimentos em transição energética,
- aumento expressivo dos gastos em defesa desde 2022.
- Fragmentação política interna
Em diversos países, partidos céticos ou abertamente hostis à ajuda a Kiev ganharam espaço, pressionando coalizões no poder.
Alguns governos temem que pacotes de ajuda muito volumosos se tornem combustível eleitoral para forças populistas ou pró-Rússia. - Poder de veto de Estados-membros
Decisões cruciais de política externa e de financiamento exigem unanimidade entre os 27. Governos que desejam barganhar concessões em outras áreas – como sanções, política energética ou migração – podem bloquear ou atrasar pacotes de ajuda à Ucrânia. O caso da Eslováquia, que já se opôs a iniciativas de sanções e demonstrou reservas em relação ao uso de ativos russos, ilustra como um único Estado pode travar decisões estratégicas.
No curto prazo, é provável que a UE recorra a arranjos temporários, combinando empréstimos, redirecionamento de verbas e uso parcial de lucros provenientes dos ativos russos congelados – sem tocar, por enquanto, no capital principal. Mesmo assim, o custo político e financeiro dessa engenharia aumenta à medida que o conflito se prolonga.
O risco de “fadiga estratégica” e o cálculo de Moscou
A dificuldade europeia em fechar um pacote robusto e estável de financiamento não é apenas um problema contábil: é um dado estratégico que Moscou acompanha de perto.
A Rússia pode interpretar:
- A fragmentação europeia como sinal de que o apoio a Kiev é forte, mas não ilimitado;
- A demora em decisões de financiamento como evidência de que a janela de oportunidade para ganhos militares ainda está aberta, especialmente se a Ucrânia começar a enfrentar falta de munição, atrasos salariais para militares ou cortes em serviços públicos essenciais.
De outro lado, líderes europeus argumentam que ceder agora à fadiga teria um custo ainda maior no futuro. A lógica é que, se a Rússia consolidar ganhos territoriais por exaustão da Ucrânia e hesitação ocidental, o preço de reconstruir a ordem de segurança europeia – e de conter novas aventuras militares – pode se tornar muito mais alto.
Dnipro como alerta: a guerra continua, com ou sem consenso financeiro
O ataque de drones a Dnipro – com danos a uma emissora pública e a infraestrutura civil – funciona, em certo sentido, como um lembrete gráfico de que a guerra permanece intensa, mesmo enquanto a diplomacia financeira patina em corredores de Bruxelas.
Para a Ucrânia, a mensagem enviada aos aliados é clara:
- No campo de batalha, o país ainda enfrenta ataques constantes a cidades, infraestrutura e meios de comunicação.
- Na frente econômica, sem um esquema de financiamento previsível e de longo prazo, torna-se mais difícil planejar não apenas a defesa, mas também a manutenção de um Estado minimamente funcional.
O que está em jogo para a União Europeia
Para além da solidariedade com um país invadido, o debate sobre o financiamento da Ucrânia é, na visão de muitos analistas, um teste de fogo para a própria União Europeia enquanto ator geopolítico.
Três questões centrais estão em jogo:
- Capacidade de agir em crises prolongadas
A UE foi criada, em grande medida, para gerir crises econômicas e políticas dentro de suas fronteiras. A guerra na Ucrânia exige um passo além: a capacidade de sustentar, por anos, um aliado em conflito aberto com uma potência nuclear. - Credibilidade como potência normativa
A União Europeia se apresenta, há décadas, como defensora de normas internacionais, soberania e direitos humanos. Se falhar em apoiar de forma consistente um país europeu invadido, corre o risco de ver sua narrativa de “potência normativa” descolada da realidade. - Precedente para conflitos futuros
A decisão sobre como usar – ou não – os ativos russos congelados criará um precedente importante. Se a UE optar por confiscar ativos estatais de forma ampla, abre-se um novo capítulo na forma como guerras e sanções são financiadas e punidas. Se recuar, pode reforçar a ideia de que o direito internacional protege inclusive o patrimônio de Estados que violam essas mesmas normas.
Conclusão: entre drones e dígitos, uma guerra de resistência
O ataque de drones russos a Dnipro, atingindo uma emissora pública e estruturas civis, é mais um capítulo de uma guerra que se tornou, ao mesmo tempo, militar, econômica e narrativa. Os destroços do prédio da Suspilne Dnipro simbolizam o esforço de calar vozes; o impasse em Bruxelas, por sua vez, evidencia a dificuldade europeia em transformar discursos de solidariedade em estruturas financeiras sustentáveis.
Para a Ucrânia, a equação é brutalmente simples: sem recursos, não há resistência duradoura. Para a União Europeia, a conta é mais complexa, mas não menos urgente: quanto está disposta a pagar – em dinheiro, coesão política e risco jurídico – para garantir que uma fronteira oriental em chamas não se transforme, amanhã, em um teste ainda mais caro para a segurança e os valores do próprio bloco?

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