A Geórgia já foi descrita como “aluno modelo” pós-soviético: reformas econômicas rápidas, eleições competitivas, mídia vibrante e uma sociedade civil fortemente pró-Ocidente. Nos últimos anos, porém – e sobretudo desde as eleições parlamentares de 2024 –, o país entrou numa trajetória de endurecimento autoritário que hoje preocupa diretamente a União Europeia (UE), da qual a Geórgia é candidata formal desde 2023.
Relatórios recentes da UE e de institutos de pesquisa apontam um quadro de retrocesso democrático, perseguição à oposição, fragilização de instituições de controle e aproximação estratégica com Rússia e China.
A seguir, um panorama analítico desse processo, seus atores centrais e as implicações para o futuro da Geórgia e da parceria com a UE.
De “história de sucesso” à candidata “apenas no nome”
Após a independência da União Soviética, a Geórgia passou por fases turbulentas, mas conseguiu construir uma imagem externa de país reformista, sobretudo após a Revolução das Rosas (2003). Reformas anticorrupção, modernização do Estado e alinhamento com a OTAN e a UE projetaram Tbilisi como um caso de sucesso democrático no Cáucaso.
Essa narrativa, porém, foi se desgastando ao longo da década de 2010, com a ascensão do partido Sonho Georgiano (Georgian Dream – GD), fundado pelo bilionário Bidzina Ivanishvili. Críticos afirmam que, a partir de 2012, começou um processo gradual de concentração de poder, captura de instituições e uso seletivo da justiça, que se intensificou fortemente depois da invasão russa à Ucrânia em 2022.
O marco simbólico mais recente dessa deterioração é a avaliação da própria UE: em 2025, um relatório europeu classificou a Geórgia como “candidata apenas no nome”, apontando “sério retrocesso democrático” e instituições debilitadas, especialmente o Judiciário, visto como subordinado ao Executivo.
Endurecimento interno: leis repressivas e eleições contestadas
Leis de “agentes estrangeiros” e repressão à sociedade civil
Um dos pontos de ruptura foi a adoção da chamada “lei de agentes estrangeiros” em 2024, inspirada em legislações usadas pela Rússia para controlar ONGs e mídia independente. A norma exige que organizações que recebam uma parcela significativa de recursos externos se registrem como “agentes de influência estrangeira”, estigmatizando-as e abrindo espaço para perseguição administrativa e judicial.
Essa lei se somou a outras medidas restritivas que:
- ampliam poderes policiais em contextos de protestos;
- dificultam o financiamento de partidos e ONGs;
- permitem a vigilância e o monitoramento de opositores sob pretexto de “segurança nacional”.
Organizações de direitos humanos e a própria UE interpretam esse pacote como parte de uma estratégia de “neutralização” da sociedade civil pró-europeia, que historicamente desempenhou papel central nas mobilizações a favor da integração com a UE e a OTAN.
Eleições de 2024: alegações de fraude e crise de legitimidade
As eleições parlamentares de outubro de 2024, vencidas pelo Sonho Georgiano em seu quarto mandato consecutivo, são descritas por análises independentes como profundamente problemáticas. Relatos apontam:
- uso abusivo da máquina estatal;
- intimidação de eleitores;
- manipulação de mídia;
- irregularidades no processo de apuração.
O resultado foi contestado por amplas parcelas da oposição, que anunciaram boicote ao Parlamento. Uma parte dos partidos manteve o boicote por meses, enquanto outra, como o For Georgia, decidiu mais tarde ocupar seus assentos, argumentando que era preciso “retomar espaço político” num cenário de crescente autoritarismo.
O boicote, somado à repressão nas ruas, alimentou uma crise de legitimidade: de um lado, um governo que se apresenta como defensor da estabilidade e da paz; de outro, uma sociedade civil e uma oposição fragmentadas, mas majoritariamente pró-UE, questionando a imparcialidade das regras do jogo.
Oposição sob ataque: prisões, exílios e ameaça de banimento
O traço mais alarmante do atual momento georgiano é a perseguição sistemática de figuras da oposição, jornalistas críticos e ativistas.
Prisões e processos politizados
Relatos de ONGs e da mídia mostram um padrão nítido:
- líderes de partidos pró-UE presos ou sob processos considerados politicamente motivados;
- ativistas jovens acusados de crimes graves por participação em protestos;
- jornalistas investigativos enquadrados em leis de “extremismo” ou “ataque a autoridades” após confrontos em manifestações.
Casos emblemáticos incluem:
- ativistas pró-UE presos durante protestos contra a suspensão do processo de adesão à UE;
- jornalistas como Mzia Amaglobeli detidos sob acusações desproporcionais, vistos por entidades como Transparência Internacional como punição por expor corrupção governamental;
- políticos como Zurab Japaridze, líder liberal pró-UE, detido e posteriormente encarcerado com base em procedimentos amplamente criticados como instrumentos de intimidação política.
Caminho para o sistema de partido hegemônico
Em 2025, o Sonho Georgiano deu um passo ainda mais drástico ao anunciar que pediria à Corte Constitucional a proibição formal dos três principais partidos de oposição, sob a alegação de que representariam ameaça à ordem constitucional.
Na prática, isso significaria:
- transformar a Geórgia em um quase sistema de partido único, com oposição apenas residual ou pró-governo;
- esvaziar qualquer competição real em futuras eleições;
- aprofundar a ruptura com os padrões democráticos exigidos pela UE para avançar no processo de adesão.
Analistas e ex-diplomatas georgianos definem a situação como estar “a cinco minutos de uma ditadura de partido único”.
Desmonte institucional e a questão do combate à corrupção
Outro sinal de retrocesso é a decisão do governo de extinguir o Escritório Anticorrupção, criado em 2022 por recomendação da UE como parte das condições para o status de candidato.
O Executivo argumenta que se trata de “otimização de recursos” e que suas funções serão absorvidas pelo órgão de auditoria estatal. Contudo:
- mais de 50 ONGs georgianas alegam que o escritório nunca foi verdadeiramente independente e vinha sendo usado para intimidar organizações críticas;
- na avaliação delas, em vez de reforçar o combate à corrupção, a medida enfraquece os mecanismos de fiscalização do poder e consolida o controle governamental sobre o sistema de integridade pública.
A abolição do órgão ocorre justamente quando Bruxelas intensifica críticas ao uso das instituições para perseguir opositores e ativistas, reforçando a percepção de que a prioridade do governo é a autopreservação, não reformas estruturais.
Geopolítica do retrocesso: entre Moscou, Pequim e Bruxelas
A crise interna da Geórgia está diretamente ligada à sua posição geopolítica.
A narrativa do “risco de guerra com a Rússia”
O Sonho Georgiano justifica o endurecimento político e a hostilidade a parte da oposição com o argumento de que seus críticos estariam tentando arrastar a Geórgia para uma guerra com a Rússia, replicando o cenário ucraniano.
Esse discurso se apoia em fatores reais:
- a memória traumática da guerra de 2008 com a Rússia, que resultou no controle russo sobre Abecásia e Ossétia do Sul;
- a presença militar e política russa no entorno georgiano;
- a dependência econômica parcial em relação ao mercado russo e ao fluxo de cidadãos russos que migraram após 2022.
Contudo, críticos afirmam que essa retórica é usada para deslegitimar qualquer oposição, associando automaticamente forças pró-UE a agendas “pró-guerra” ou “anti-nacionais”.
Economia em crescimento, mas investimento ocidental em queda
Paradoxalmente, a economia georgiana tem crescido, beneficiando-se da chegada de empresas e capital russos desviados por sanções, além de fluxos migratórios que dinamizam setores como tecnologia e serviços.
Ao mesmo tempo:
- investimentos estratégicos ocidentais diminuem, diante do risco político e da percepção de retrocesso institucional;
- projetos-chave, como o desenvolvimento de infraestrutura portuária voltada ao comércio com a Europa, são revistos ou colocados em segundo plano, com maior espaço para atores chineses em licitações e contratos.
O resultado é uma reorientação gradual da Geórgia, que, sem assumir formalmente uma ruptura com o Ocidente, aproxima-se de Moscou e Pequim na prática, sobretudo em termos econômicos e de modelo político.
UE diante de um dilema estratégico
Bruxelas vive um impasse diante da Geórgia. Por um lado:
- a sociedade georgiana é amplamente pró-europeia, com pesquisas mostrando apoio consistente à integração com a UE;
- o país tem papel estratégico no Cáucaso, corredor energético e de transporte entre Europa e Ásia.
Por outro:
- o governo atual adota um curso claramente antiliberal e anti-pluralista;
- o congelamento ou recuo no processo de adesão pode ser explorado por Moscou como “prova” de que o Ocidente não é um parceiro confiável.
O Parlamento Europeu já afirmou publicamente que a Geórgia não pode aderir à UE enquanto seu governo mantiver o rumo autoritário atual, enfatizando que o apoio europeu está voltado sobretudo ao povo georgiano, não ao governo.
Esse dilema se traduz em uma política de:
- pressão seletiva (sanções a indivíduos ligados ao governo, críticas públicas, congelamento de certos processos);
- combinada com apoio reforçado à sociedade civil, mídia independente e comunidades locais pró-UE.
Riscos e cenários: para onde pode caminhar a Geórgia?
O rumo político da Geórgia hoje é visto como altamente incerto, mas alguns cenários se desenham no curto e médio prazo.
Consolidação do autoritarismo competitivo
Caso a proibição das principais forças de oposição se concretize, o país tende a migrar de um sistema de “autoritarismo competitivo” – no qual ainda há eleições, mas sem condições justas – para algo mais próximo de um regime hegemônico, onde:
a alternância de poder é praticamente impossível;
o Parlamento se torna predominantemente pró-governo;
a independência do Judiciário e dos órgãos de fiscalização é ainda mais erodida.
Nesse cenário, a UE tenderia a manter a Geórgia congelada em um limbo: candidata nominal, mas sem avanço real – semelhante a outros casos de “estagnação democrática” nos Balcãs, porém com o agravante da forte influência russa.
Reação social e pressão internacional
Outra possibilidade é que a combinação de:
- mobilização interna (protestos, campanhas cívicas, imprensa independente);
- e pressão externa (sanções pessoais, condicionamentos econômicos);
leve o governo a recuar parcialmente, liberando presos políticos, suspendendo tentativas de banimento partidário ou revisando leis repressivas.
Esse caminho dependeria:
- do grau de unidade da oposição, hoje fragmentada;
- da capacidade da UE e de parceiros como EUA de coordenar uma linha clara: punição a retrocessos, recompensa a reformas concretas.
Mudança gradual ou ruptura nas urnas
A médio prazo, se ainda houver espaço para competição eleitoral real, é possível que:
- uma coalizão mais ampla e pragmática da oposição consiga, em futuras eleições, canalizar o descontentamento social e oferecer uma alternativa estável, evitando tanto a captura estatal quanto aventuras radicais;
- ou, em cenário mais tenso, uma combinação de crise econômica, repressão excessiva e ruptura entre elites leve a uma transição abrupta, com risco de instabilidade interna.
Por que a situação da Geórgia importa para a UE (e para além dela)
A crise georgiana vai além de um caso “local” no Cáucaso. Ela é sintoma de duas tendências mais amplas:
- Disputa de modelos políticos
Rússia e China promovem, direta ou indiretamente, um modelo que combina autoritarismo político com abertura econômica seletiva. A Geórgia, outrora vitrine do caminho pró-UE, hoje ilustra como esse modelo pode seduzir elites que buscam manter poder sem controles democráticos. - Desgaste do “soft power” europeu
Quando um país candidato consegue recuar de padrões democráticos básicos sem perder, ao menos de imediato, benefícios econômicos importantes, envia-se a mensagem de que os custos do retrocesso podem ser administráveis. Isso fragiliza o poder de atração da UE também em outros cenários, como nos Balcãs Ocidentais e na vizinhança oriental.
Conclusão
A Geórgia vive um momento decisivo. O país que, por anos, simbolizou a possibilidade de uma transição democrática bem-sucedida no espaço pós-soviético hoje se encontra à beira de um regime de partido hegemônico, com oposição acuada, instituições minadas e um governo mais confortável em dialogar com Moscou e Pequim do que com Bruxelas.
Para a União Europeia, a questão central já não é apenas “se” a Geórgia pode aderir, mas “qual Geórgia” chegará à porta de entrada do bloco: uma sociedade pró-europeia sufocada por um regime autoritário, ou um país que, apesar dos recuos, seja capaz de retomar o caminho de reformas, pluralismo e Estado de Direito.
O desfecho dependerá da relação de forças entre governo e sociedade, da habilidade da oposição em se reorganizar, e da capacidade da UE de transformar sua preocupação em incentivos e pressões concretas – evitando tanto o abandono quanto a complacência diante do retrocesso democrático em um parceiro estratégico.

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