EUA e China retomam diálogo militar no Pacífico em meio à disputa por poder e rotas marítimas

Bandeiras dos Estados Unidos e da China exibidas lado a lado em ilustração feita em 24 de setembro de 2025. REUTERS/Dado Ruvic/Illustration.
Bandeiras dos Estados Unidos e da China exibidas lado a lado em ilustração feita em 24 de setembro de 2025. REUTERS/Dado Ruvic/Illustration.

Os Estados Unidos e a China voltaram a conversar cara a cara sobre segurança marítima, desta vez no Havaí, em um encontro classificado como “franco e construtivo” pela Marinha chinesa. Em meio a meses de tensões no Mar do Sul da China, disputas por liberdade de navegação e rivalidade tecnológica, a retomada do diálogo militar não resolve os conflitos em curso, mas indica um esforço claro de gestão de risco entre as duas maiores potências do mundo.

Mais do que um gesto isolado, essas conversas fazem parte de uma tentativa de reconstruir canais de comunicação que ficaram enfraquecidos por incidentes, sanções e retórica agressiva. Em uma região onde navios de guerra, aviões de patrulha, guardas-costeiras e embarcações civis operam frequentemente lado a lado, falar não é luxo diplomático – é mecanismo de sobrevivência estratégica.

Por que o Havaí e por que agora?

Realizar as conversas no Havaí tem um peso simbólico e prático. O arquipélago é sede do Comando Indo-Pacífico dos Estados Unidos, coração da estratégia militar americana na região. Ao receber delegações chinesas ali, Washington sinaliza que está disposto a reduzir o risco de incidentes, mas sem recuar na sua presença militar.

O momento também não é aleatório:

  • Acúmulo de incidentes no mar e no ar
    Nos últimos meses, foram registrados episódios de aproximações perigosas entre navios e aeronaves dos dois países, inclusive com acusações mútuas de manobras arriscadas e “provocações” em rotas sensíveis, especialmente no Mar do Sul da China e em áreas próximas a Taiwan.
  • Ambiente de rivalidade estrutural
    Ao mesmo tempo em que falam de segurança marítima, EUA e China travam disputas em tecnologia (chips, inteligência artificial, 5G), comércio, cadeias de suprimento e influência diplomática. Nenhuma dessas frentes está pacificada – pelo contrário, formam o pano de fundo da conversa.
  • Pressão de aliados e parceiros
    Países da região, como Filipinas, Vietnã, Japão, Coreia do Sul e Austrália, veem com preocupação a possibilidade de um acidente militar escalar para crise aberta. Muitos deles dependem dos EUA para segurança, mas têm a China como principal parceiro comercial. Para essas nações, diálogo entre Washington e Pequim é quase uma questão de sobrevivência econômica e estratégica.

O que é “segurança marítima” nesse contexto?

Quando EUA e China falam em “segurança marítima”, não se trata apenas de pirataria ou busca e salvamento no mar. O termo engloba:

  1. Regras de conduta entre navios e aeronaves militares
    São protocolos sobre distância mínima, comunicação por rádio, sinais visuais e formas de evitar que uma manobra mal interpretada seja vista como ato hostil. Pequenas falhas podem gerar grandes crises.
  2. Liberdade de navegação vs. soberania marítima
    Os Estados Unidos defendem operações de “liberdade de navegação”, enviando navios de guerra para navegar em áreas que consideram rotas internacionais. A China, por sua vez, reivindica vastas zonas marítimas no Mar do Sul da China como águas sob jurisdição própria. O conflito é direto: o que um lado chama de direito internacional, o outro chama de violação de soberania.
  3. Atividades de guardas-costeiras e milícias marítimas
    Pequim é frequentemente acusada de usar guardas-costeiras e embarcações “civis” como instrumentos de pressão em áreas disputadas. Do ponto de vista americano, isso complica o ambiente, pois mistura atores militares e paramilitares, dificultando qualquer cálculo de risco.
  4. Proteção de rotas comerciais e infraestruturas críticas
    Grande parte do comércio mundial e de fluxos energéticos passa por rotas asiáticas. Cabos submarinos, portos, instalações navais e plataformas energéticas são pontos sensíveis. A busca por segurança marítima inclui a tentativa de proteger esses ativos sem dar ao outro lado a impressão de preparação para conflito.

O que cada lado busca com esse diálogo?

Para os Estados Unidos

  • Evitar surpresas e incidentes fora de controle
    Washington sabe que um choque acidental – uma colisão de navios, um avião interceptado de forma agressiva – pode obrigar o governo americano a responder de modo duro, pressionado pela opinião pública e pelo Congresso.
  • Mostrar responsabilidade aos aliados
    Ao dialogar com a China, os EUA reforçam junto a parceiros que estão tentando reduzir riscos, sem abandonar o compromisso com a defesa de aliados e com a liberdade de navegação.
  • Separar gestão de crise de rivalidade estratégica
    A mensagem implícita é: “Continuaremos a competir com a China em tecnologia, economia e influência, mas queremos impedir que essa competição descambe para guerra por erro de cálculo”.

Para a China

  • Ganhar espaço para consolidar presença regional
    Ao estabilizar a relação militar com os EUA, Pequim pode continuar avançando, de forma gradual, em sua presença no Mar do Sul da China, construindo ilhas artificiais, ampliando bases e testando reações, mas com menor risco de choque direto com a Marinha americana.
  • Projetar imagem de potência responsável
    Ao falar em conversas “francas e construtivas”, a China se apresenta como ator responsável, disposto ao diálogo e à cooperação, especialmente diante de países que temem ser arrastados para a rivalidade entre as duas potências.
  • Ganhar tempo em outras frentes
    Em meio a desafios internos – desaceleração econômica, questões sociais e ajustes no setor imobiliário e financeiro –, reduzir o risco de crise militar com os EUA é também uma forma de evitar novos choques externos.

O pano de fundo: Mar do Sul da China, Taiwan e tecnologia

As conversas no Havaí não surgem no vazio. Elas estão conectadas a três grandes frentes de tensão.

1. Mar do Sul da China

A China reivindica grande parte dessa área como seu “mar histórico”, em conflito com reivindicações de Filipinas, Vietnã, Malásia, Brunei e Indonésia. Os EUA, por sua vez, realizam operações navais para contestar essas reivindicações, alegando defesa da ordem baseada em regras e do direito internacional do mar.

Navios americanos e chineses já tiveram aproximações perigosas. Basta que um desses encontros tenha interpretação equivocada para se transformar em incidente diplomático ou militar.

2. Taiwan

Embora o foco imediato das conversas seja “segurança marítima” em sentido amplo, Taiwan permanece no centro das preocupações estratégicas. A ilha é vista por Pequim como parte inalienável do território chinês, enquanto Washington mantém uma política ambígua: não reconhece Taiwan como Estado soberano, mas lhe vende armas e promete ajudar na defesa da ilha.

Qualquer aumento de patrulhas, exercícios militares ou voos próximos ao espaço aéreo de Taiwan eleva a tensão. Ter canais de conversa abertos é vital para que, em caso de crise, haja ao menos um número de telefone que alguém possa atender do outro lado.

3. Disputa tecnológica e militarização da inovação

A rivalidade por chips avançados, inteligência artificial, computação de alta performance e sistemas de vigilância digital está diretamente ligada à dimensão militar. Quem controla as tecnologias mais avançadas tem vantagem na guerra cibernética, em sistemas de mísseis, drones e armamentos inteligentes.

As restrições americanas à exportação de chips e equipamentos para empresas chinesas e a reação de Pequim, com seus próprios controles e iniciativas de autossuficiência tecnológica, criam clima de desconfiança geral. Mesmo um simples exercício naval passa a ser visto sob a lente de testes de novos sensores, radares ou algoritmos de IA.

O que muda na prática com o diálogo militar?

É importante ter clareza: essas conversas não significam uma “amizade” entre EUA e China nem o fim da rivalidade. Mas podem produzir alguns efeitos concretos:

  1. Linhas diretas de comunicação (hotlines)
    Reativação ou aprimoramento de canais de contato entre comandantes militares, permitindo respostas rápidas em caso de incidente.
  2. Procedimentos compartilhados de segurança
    Acordos tácitos ou formais sobre como navios e aviões devem agir em encontros próximos, reduzindo risco de manobras interpretadas como hostis.
  3. Mecanismos de transparência parcial
    Troca limitada de informações sobre exercícios militares de grande porte, para evitar que um lado interprete o exercício do outro como preparação imediata para ataque.
  4. Agenda mínima de cooperação
    Mesmo em cenário de rivalidade, há espaço para cooperação pontual em temas como busca e salvamento marítimo, combate à pirataria, desastres naturais ou acidentes envolvendo embarcações civis.

Limites e fragilidades desse processo

Apesar dos aspectos positivos, esse tipo de diálogo tem limites claros:

  • Alta desconfiança estruturante
    Cada lado suspeita das intenções do outro. Pequim vê a presença americana na região como tentativa de contenção. Washington enxerga a expansão militar chinesa como ameaça à ordem vigente e aos aliados.
  • Pressões políticas internas
    Líderes dos dois países precisam lidar com públicos domésticos que, muitas vezes, exigem postura firme. Concessões visíveis a “um rival” podem ser exploradas por opositores.
  • Interferência de terceiros e crises externas
    Um choque entre guardas-costeiras chinesas e navios de países aliados aos EUA, por exemplo, pode obrigar Washington a se posicionar de forma mais dura, complicando o clima de diálogo.
  • Caráter reversível do entendimento
    Um único incidente grave, uma sanção econômica mais agressiva ou um passo a mais na questão Taiwan pode levar à suspensão desses canais – algo que já aconteceu no passado.

Conclusão: diálogo como gestão de risco, não como fim da disputa

A retomada do diálogo militar entre Estados Unidos e China sobre segurança marítima no Havaí é um movimento importante, mas deve ser lido como gestão de risco em meio à rivalidade, e não como sinal de reconciliação.

As duas potências seguem competindo por influência, tecnologia, rotas comerciais e capacidade militar. O que muda, com conversas “francas e construtivas”, é a tentativa de evitar que essa competição transborde, por erro de cálculo, para um conflito aberto que ninguém realmente deseja – e que teria impacto devastador para toda a Ásia e para a economia mundial.

Em um Indo-Pacífico cada vez mais central na ordem internacional, o fato de Washington e Pequim voltarem a se falar não resolve as tensões, mas indica que, pelo menos por agora, ambos reconhecem que o silêncio entre militares é, paradoxalmente, muito mais perigoso do que a rivalidade declarada.

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