EUA x Tráfico de Drogas da Venezuela: pressão militar, discurso político e riscos para a região

US Navy F/A-18F Super Hornet decolando do porta-aviões USS Gerald R Ford no mar do Caribe, em 18 de novembro de 2025
US Navy F/A-18F Super Hornet é lançado do porta-aviões USS Gerald R Ford enquanto opera no mar do Caribe, em 18 de novembro de 2025 Jerome Johnson/US Navy via Reuters

A recente declaração do governo dos Estados Unidos, afirmando ter reduzido em 85% o fluxo de drogas por via marítima a partir da Venezuela e prometendo “em breve parar o tráfico por terra”, marca mais um capítulo da longa e complexa relação entre Washington, Caracas e o narcotráfico na América Latina. Por trás dos números e das frases de efeito, há uma combinação de estratégia militar, disputa geopolítica, cálculo eleitoral e impactos diretos sobre a região.

Este artigo analisa o contexto dessas operações, os interesses em jogo, as possíveis consequências para a Venezuela, países vizinhos e para a própria política interna dos EUA, além dos riscos de militarização agravada de rotas e fronteiras.

O contexto da acusação: Venezuela no centro da narrativa antidrogas

Há anos, os Estados Unidos enquadram a Venezuela como um dos principais corredores do tráfico internacional de drogas, em especial cocaína produzida em países andinos e escoada em direção ao mercado norte-americano e europeu.
Nesse cenário, o governo norte-americano associa o tema do narcotráfico:

  • à legitimidade do governo venezuelano, apresentado como conivente ou incapaz de controlar o crime organizado;
  • à necessidade de operações externas “firmes” para conter o fluxo de drogas;
  • à justificativa de presença militar ampliada no Caribe e em áreas estratégicas do Atlântico.

Quando Washington afirma que reduziu em 85% o fluxo de drogas por mar vindo da Venezuela, está fazendo mais do que divulgar um dado operacional: está construindo uma narrativa de eficácia, autoridade e controle, que reforça tanto a sua política externa quanto o discurso de segurança interna.

Ataques a embarcações e a lógica da dissuasão

A menção aos ataques a embarcações na região indica uma intensificação do uso de meios militares e de segurança — como navios de guerra, aviões de vigilância, guarda-costeira e cooperação com marinhas de países aliados — para interceptar cargueiros e lanchas rápidas usadas por organizações criminosas.

Essas operações se apoiam em três pilares:

  1. Monitoramento e inteligência
    Uso de radares, satélites, aeronaves de vigilância e cooperação com agências de outros países para rastrear rotas marítimas, identificar padrões de navegação suspeitos e coordenar abordagens.
  2. Interdição direta
    Interceptação de embarcações em alto-mar, apreensão de cargas e prisão de tripulantes, muitas vezes em operações combinadas entre forças dos EUA e países do Caribe ou da América Central.
  3. Mensagens políticas
    Cada operação bem-sucedida é transformada em vitrine: conferências de imprensa, divulgação de toneladas apreendidas e números que apontariam para o “sucesso” da estratégia de força.

Na prática, a lógica é dupla: dissuadir grupos criminosos de utilizar determinadas rotas e demonstrar poder para aliados, adversários e para o público interno norte-americano.

A promessa de “parar o tráfico por terra”: ambição ou retórica?

Se a promessa de reduzir o tráfico marítimo já é ambiciosa, a ideia de “parar o tráfico por terra” é ainda mais complexa. Diferente do mar, onde a atuação militar direta dos EUA enfrenta menos resistência política, o combate ao tráfico terrestre envolve:

  • fronteiras soberanas de vários países;
  • presença de grupos armados locais, milícias, cartéis e organizações com base territorial;
  • populações vulneráveis que muitas vezes vivem em áreas de passagem do tráfico.

Para o governo dos EUA, dizer que vai “parar o tráfico por terra” vindo da Venezuela funciona fortemente como slogan político — transmite firmeza, determinação e controle. Mas na prática:

  • o tráfico tende a adaptar rotas, deslocando-se para outras fronteiras ou países;
  • grupos criminosos diversificam meios (aviões leves, rotas fluviais, caminhões camuflados, redes logísticas mais complexas);
  • o combate exige cooperação profunda com governos vizinhos, reformas institucionais e políticas sociais, não apenas ações pontuais.

A frase, portanto, diz mais sobre o tom de confrontação e ambição política do que sobre uma capacidade real de extinguir o tráfico terrestre.

Impactos para a Venezuela: pressão externa e instrumentalização interna

Para a Venezuela, a intensificação do discurso norte-americano sobre tráfico de drogas tem vários efeitos:

  1. Pressão diplomática e isolamento
    O país é retratado como elo central de uma rede criminosa internacional, o que fragiliza sua imagem em fóruns multilaterais e dificulta aproximações com governos que não querem se indispor com Washington.
  2. Justificativa para sanções e medidas adicionais
    A narrativa do “narcoestado” serve de base para sanções, congelamento de bens, prisões de figuras ligadas ao governo no exterior e até para especulações sobre ações mais agressivas.
  3. Uso político interno em Caracas
    O governo venezuelano, por sua vez, costuma responder acusando os EUA de intervencionismo, imperialismo e manipulação. Isso é explorado internamente para justificar:
    • controle mais rígido sobre forças armadas e instituições;
    • aumento do discurso nacionalista;
    • desviar a atenção de crises econômicas e sociais internas.

Assim, o tema do narcotráfico vira arma retórica bilateral: de um lado, os EUA o utilizam para justificar ações e sanções; do outro, Caracas usa as acusações para reforçar a narrativa de resistência contra uma potência estrangeira.

Repercussões regionais: fronteiras, aliados e efeitos colaterais

A disputa entre EUA e Venezuela em torno do tema do tráfico não fica confinada aos dois países. Ela se espalha pela região de várias formas:

5.1. Países fronteiriços sob pressão

Na medida em que as rotas marítimas sofrem maior vigilância, é provável que o escoamento de drogas:

  • aumente pelas fronteiras terrestres da Venezuela com Colômbia, Brasil e Guiana;
  • utilize caminhos mais remotos, florestas, rios e áreas de difícil acesso;
  • envolva comunidades fronteiriças já marcadas por pobreza, ausência do Estado e presença de grupos criminosos.

Isso cria desafios adicionais para os governos vizinhos, que precisam lidar com:

  • aumento da violência em regiões de fronteira;
  • pressão internacional por resultados no combate ao tráfico;
  • necessidade de reforçar forças de segurança sem aprofundar violações de direitos humanos.

5.2. Aliados dos EUA e alinhamento político

Países da região que mantêm alinhamento mais próximo com Washington tendem a:

  • reforçar parcerias em operações de interdição;
  • ceder espaço para bases de cooperação, treinamento e inteligência;
  • ecoar, em maior ou menor grau, o discurso de que a Venezuela é um foco do problema.

Já governos menos alinhados ou com postura mais crítica podem tentar equilibrar-se, evitando tanto tensionar com os EUA quanto romper completamente com Caracas. O resultado é um tabuleiro diplomático delicado, em que cada posicionamento tem custo político.

Narcotráfico como tema de política interna nos EUA

Além da dimensão geopolítica, o discurso de que o governo aperta o cerco ao tráfico vindo da Venezuela é altamente útil para consumo interno nos EUA. Ele se conecta com três agendas centrais:

  1. Segurança e crime organizado
    Apresentar números expressivos de redução de fluxo de drogas ajuda a reforçar a imagem de um governo “duro com o crime” e preocupado com a crise de drogas e overdose dentro do país.
  2. Controle de fronteiras
    A ideia de “parar o tráfico por terra” conversa diretamente com o debate sobre fronteira sul, migração e muro, temas sensíveis no eleitorado.
  3. Política externa assertiva
    Ao combinar retórica dura contra o narcotráfico e contra governos rivais, o governo tenta mostrar liderança global e defender a ideia de que os EUA não hesitam em usar força e pressão para defender seus interesses.

Ou seja, a Venezuela e o narcotráfico entram também como peças na disputa política e eleitoral norte-americana.

Limites e contradições da estratégia de força

Apesar do impacto midiático, uma análise mais fria mostra que a estratégia baseada quase exclusivamente em repressão e militarização enfrenta limites bem claros:

  • O narcotráfico é um fenômeno econômico alimentado por grande demanda por drogas, principalmente nos próprios EUA e Europa.
  • A cada rota fechada, outras tendem a surgir, frequentemente mais perigosas e violentas.
  • A concentração em operações espetaculares pode deixar em segundo plano políticas estruturais, como:
    • redução da demanda interna por meio de saúde pública e prevenção;
    • combate à lavagem de dinheiro;
    • desenvolvimento econômico em regiões vulneráveis.

Além disso, o aumento da presença militar em mares e fronteiras pode:

  • gerar incidentes com embarcações civis;
  • aumentar tensões diplomáticas;
  • fortalecer grupos armados que se aproveitam do caos para controlar comunidades locais.

O que pode vir a seguir: cenários possíveis

Diante desse quadro, alguns cenários se desenham para o curto e médio prazo:

  1. Intensificação da militarização no Caribe e em áreas fronteiriças
    Os EUA podem ampliar ainda mais operações marítimas, enquanto países vizinhos reforçam patrulhas terrestres e fluviais. Isso tende a deslocar rotas, não necessariamente a eliminar o tráfico.
  2. Maior polarização diplomática
    A narrativa em torno da Venezuela como “centro do tráfico” pode aprofundar divisões na região, entre países mais alinhados a Washington e governos que defendem maior autonomia.
  3. Uso crescente do tema em campanhas eleitorais
    Tanto nos EUA quanto na própria região, o narcotráfico e a relação com a Venezuela podem seguir como bandeiras usadas em disputas políticas internas, com simplificações e exageros retóricos.
  4. Abertura ou fechamento de canais de diálogo
    Dependendo da conjuntura, a pressão pode levar a:
    • algum nível de negociação sobre segurança e cooperação; ou
    • ao completo endurecimento, com mais sanções, acusações e afastamento diplomático.

Conclusão: entre o número e a narrativa

Quando o governo dos Estados Unidos afirma ter reduzido em 85% o tráfico de drogas por mar vindo da Venezuela e promete em breve “parar o tráfico por terra”, ele não está apenas fornecendo um dado técnico. Está emitindo uma mensagem estratégica em várias direções:

  • para o eleitorado interno, como prova de força e eficiência;
  • para a Venezuela, como demonstração de pressão e poder;
  • para a região, como recado de que Washington seguirá ativo no Caribe e na América Latina;
  • para o mundo, como reforço da imagem de “polícia global” no combate ao crime internacional.

Por trás das estatísticas, o que se vê é um conflito prolongado, em que narcotráfico, geopolítica, soberania e disputa de narrativas se entrelaçam. A eficácia real de promessas de “parar o tráfico” continua aberta a questionamentos, mas o impacto político dessa retórica — tanto em Caracas quanto em Washington e nas capitais vizinhas — é imediato e profundo.

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