Exportações de Gás Russo Mantêm-se Estáveis na Europa

Painéis exibem os logos da NIS e da produtora russa de petróleo Gazprom Neft em Belgrado, Sérvia, 8 de outubro de 2025.
Logos da NIS e Gazprom Neft em painéis publicitários em Belgrado, Sérvia, 8 de outubro de 2025.

Apesar de sanções, da guerra na Ucrânia e de uma política declarada de “reduzir a dependência energética de Moscou”, o gás russo continua fluindo para a Europa por gasodutos. Dados recentes de novembro mostram que os volumes se mantiveram estáveis, contrariando a percepção de que a União Europeia teria praticamente rompido seus vínculos energéticos com a Rússia.

Esse aparente paradoxo revela uma realidade mais complexa: desfazer décadas de interdependência energética não é simples, nem rápido. Entre contratos de longo prazo, infraestrutura física limitada e pressões de mercado, a Europa segue em um delicado equilíbrio entre pragmatismo econômico e ambição geopolítica.

Um corte que nunca foi total

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2022, líderes europeus falaram em “virar a página” do gás russo. Sanções foram adotadas, projetos foram congelados e houve uma corrida por alternativas. Ainda assim, o fluxo não chegou a zero.

O fato de, em novembro, as exportações via gasodutos terem se mantido estáveis indica que:

  1. A infraestrutura construída em décadas continua operando
    Gasodutos que cruzam países como Turquia, Ucrânia e outras rotas ainda funcionam, mesmo que em menor escala do que antes da guerra.
  2. Nem todas as transações estão bloqueadas por sanções
    As medidas europeias miraram principalmente novos projetos, financiamento e certas modalidades de compra, mas permitiram margens de continuidade em contratos já existentes, sobretudo onde uma interrupção abrupta causaria risco à segurança energética.
  3. Alguns Estados-membros ainda dependem mais do gás russo
    A UE fala com uma só voz em muitos temas, mas as realidades nacionais são muito diferentes. Países com menos alternativas de suprimento ou com infraestrutura limitada de gás natural liquefeito (GNL) tendem a manter, enquanto possível, parte das importações de Moscou.

A geopolítica da “dependência residual”

O fato de o gás russo continuar chegando à Europa, mesmo com volumes menores, tem implicações políticas importantes.

2.1. Moscou ainda tem algum peso sobre o mercado europeu

Embora a Rússia tenha perdido espaço como principal fornecedor, a manutenção de fluxos via gasodutos significa que:

  • o Kremlin ainda dispõe de uma alavanca, mesmo enfraquecida, sobre preços e oferta;
  • qualquer interrupção repentina, por decisão política ou conflito técnico, ainda pode gerar volatilidade nos mercados e pressão sobre governos europeus.

Isso não quer dizer que a Europa esteja “refém” como antes, mas sim que a transição para um cenário de independência maior é gradual, não instantânea.

2.2. A Europa entre discurso e prática

Há também um custo reputacional e político interno:

  • De um lado, governantes falam em “fim da dependência” e “ruptura estratégica” com Moscou.
  • De outro, a manutenção de fluxos de gás alimenta críticas de que o continente ainda financia, mesmo que em menor grau, o orçamento de guerra russo.

Essa tensão entre discurso e realidade material alimenta debates internos, especialmente em países onde a opinião pública é mais sensível ao tema ucraniano e às questões de direitos humanos e segurança.

Por que a Europa não consegue simplesmente “desligar a chave”

A explicação central está na combinação de infraestrutura, contratos e tempo.

3.1. Infraestrutura física

  • Gasodutos são ativos de longo prazo, construídos com bilhões em investimento.
  • A substituição por GNL exige:
    • terminais de regaseificação em portos;
    • navios especializados;
    • contratos com novos fornecedores (Estados Unidos, Catar, África, etc.).

Em muitos países europeus, essa infraestrutura ainda está em expansão. A capacidade total cresceu, mas não de forma homogênea.

3.2. Contratos de longo prazo

  • Parte das compras de gás é regida por contratos que se estendem por décadas.
  • Romper ou alterar esses acordos implica:
    • litígios;
    • multas;
    • impactos financeiros para empresas e consumidores.

Embora, em contexto de guerra, a política tenha pesado mais que os contratos em vários casos, nem todas as relações foram cortadas da mesma forma.

3.3. Tempo de adaptação econômica

  • Substituir gás russo por outras fontes pode elevar custos no curto prazo.
  • Indústrias intensivas em energia, como química, siderúrgica e de manufatura pesada, sentem diretamente a alta de preços.
  • Governos precisam equilibrar sanções e princípios com a necessidade de evitar recessão, desemprego e perda de competitividade.

Assim, o corte não é uma decisão binária, mas um processo negociado, cheio de concessões intermediárias.

Como os países europeus se reorganizaram – e até onde foram

Mesmo com o gás russo ainda fluindo, a matriz energética europeia passou por uma transformação acelerada desde o início da guerra.

4.1. A explosão das importações de GNL

  • A Europa aumentou significativamente a compra de gás natural liquefeito, principalmente de:
    • Estados Unidos;
    • países do Golfo;
    • alguns fornecedores africanos.
  • Terminais foram ampliados, novos projetos acelerados e contratos emergenciais fechados.

Isso reduziu a fatia da Rússia no total de importações, mas não a eliminou por completo.

4.2. Volta de fontes “velhas” e impulso às renováveis

  • Alguns países reativaram temporariamente usinas a carvão ou prolongaram a vida útil de usinas nucleares para enfrentar o choque inicial de oferta.
  • Paralelamente, houve:
    • avanço em projetos eólicos e solares;
    • novos debates sobre hidrogênio verde;
    • incentivos a economia de energia e eficiência energética.

A permanência do gás russo, portanto, convive com uma agenda declarada de aceleração da transição energética.

Os efeitos sobre a Rússia: perda de hegemonia, não de relevância

Do lado russo, a manutenção dos fluxos, ainda que menores, revela outro aspecto:

  1. Perda de mercado prioritário
    • A Europa era o cliente mais importante, com rotas consolidadas e preços relativamente estáveis.
    • A redução dessa dependência forçou Moscou a olhar mais para a Ásia, especialmente a China, para redirecionar parte da produção.
  2. Receita ainda significativa
    • Mesmo com queda de volumes e descontos nos preços, o gás continua sendo fonte de receita para o Estado russo.
    • A combinação gás + petróleo + outros recursos energéticos ainda sustenta grande parte do orçamento público.
  3. Pressão por novos projetos
    • A Rússia tenta acelerar gasodutos e parcerias fora da Europa, mas enfrenta:
      • limitações técnicas;
      • barganha dura de compradores asiáticos, que exigem preços mais baixos;
      • sanções que dificultam financiamento e tecnologia.

A leitura que se desenha é que a Rússia perdeu a “posição dominante” no mercado europeu, mas não foi totalmente expulsa dele.

A leitura dos aliados de Kiev

Para a Ucrânia e aliados mais próximos de Kiev, a permanência do gás russo no mercado europeu é motivo de frustração e alerta:

  • Frustração, porque isso reforça a percepção de que parte da guerra continua sendo financiada por fluxos comerciais energéticos.
  • Alerta, porque mantidas certas dependências, Moscou pode tentar usar o gás novamente como instrumento de pressão futura, em momentos de crise de preço ou disputa política.

Países do leste europeu, que historicamente sofreram com cortes seletivos de gás, são os mais vocalmente críticos à permanência dessa relação.

O que os dados de novembro realmente sinalizam

O fato de os dados de novembro mostrarem estabilidade nas exportações russas de gás via gasodutos para a Europa pode ser interpretado como:

  1. Um “piso” da dependência atual
    • Talvez a UE tenha chegado a um ponto em que conseguiu cortar a maior parte do volume, mas ainda mantém um nível mínimo “estrutural” difícil de eliminar no curto prazo.
  2. Um momento de acomodação
    • Depois do choque de 2022 e 2023, mercados, governos e empresas parecem ter encontrado um certo equilíbrio, mesmo que provisório, entre novas fontes e resquícios das antigas.
  3. Um lembrete da vulnerabilidade
    • A estabilidade atual não garante estabilidade futura: qualquer novo conflito, incidente em gasodutos ou decisão política pode alterar novamente o quadro.

Caminhos possíveis para o futuro

O que pode acontecer a partir daqui?

8.1. Redução gradual até o patamar residual

É provável que, se não houver reviravoltas políticas, a UE continue a:

  • investir em alternativas (GNL, renováveis, interconexões internas);
  • deixar vencer contratos antigos sem renová-los;
  • reduzir, ano a ano, a fatia do gás russo até algo próximo de um mínimo residual ou eventual.

8.2. Cenários de ruptura mais brusca

Um agravamento da guerra, novas sanções ou decisões unilaterais de Moscou podem:

  • acelerar uma ruptura mais radical;
  • forçar a Europa a medidas emergenciais, inclusive com custos econômicos maiores no curto prazo.

8.3. Uma relação de “distância controlada”

Há também a possibilidade de o continente caminhar para uma espécie de “distanciamento sem divórcio total”:
– um nível baixo, porém estável, de importações russas, aceito como parte da realidade de um mercado energético interligado, mas sem o peso estrutural do passado.

Conclusão

O fato de o gás russo ainda fluir para a Europa por gasodutos, com volumes estáveis em novembro, mostra que a ruptura energética entre Bruxelas e Moscou é real, porém incompleta. A União Europeia avançou muito na diversificação de fornecedores e na redução da dependência, mas continua presa a uma herança de infraestrutura, contratos e necessidades de mercado.

Essa dependência residual mantém uma linha de interdependência entre Rússia e Europa, mesmo em meio à guerra na Ucrânia e a uma disputa geopolítica aberta. Ao mesmo tempo, serve como lembrete de que transformar slogans políticos em mudanças estruturais leva tempo, investimentos pesados e, muitas vezes, escolhas difíceis entre segurança, economia e princípios.

Em última análise, o gás que ainda atravessa gasodutos rumo à Europa é o símbolo de uma transição em curso – nem o velho modelo de dependência quase total, nem o cenário idealizado de independência plena. É um meio-termo instável, no qual decisões dos próximos anos definirão se essa ligação será definitivamente reduzida a um resquício periférico ou se permanecerá como um componente duradouro, ainda que menor, da energia europeia.

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