Japão à beira de uma guinada militar? Tensão com China e Coreia do Sul aumenta em meio a debates sobre armas nucleares

Sanae Takaichi e Lee Jae-myung apertam as mãos durante encontro para fortalecer as relações entre Japão e Coreia do Sul
A primeira-ministra japonesa Sanae Takaichi e o presidente sul-coreano Lee Jae-myung se cumprimentam durante encontro voltado ao fortalecimento dos laços entre Japão e Coreia do Sul. Foto: Reuters.

A região do Nordeste Asiático voltou ao centro das atenções nesta quinta-feira, 20 de novembro de 2025, com uma combinação de sinais diplomáticos tensos, protestos populares e um debate sensível sobre o futuro militar do Japão. O adiamento, por parte da China, de uma reunião trilateral com Japão e Coreia do Sul, somado à pressão interna sobre o governo japonês para rever pilares da sua política de defesa, aponta para uma fase de maior incerteza e risco na região.

No coração dessa disputa estão três elementos centrais: o avanço da agenda militar do governo japonês, a reação de Pequim e Seul a esse movimento, e a resistência simbólica e política dos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki, que temem o desmonte de um compromisso histórico com o desarmamento nuclear.

China adia reunião trilateral e envia recado político

O primeiro sinal visível de deterioração do clima regional veio de Pequim. As autoridades chinesas decidiram adiar uma reunião trilateral de ministros da Cultura com Japão e Coreia do Sul, programada para este mês. Oficialmente, o governo chinês não apresentou uma justificativa detalhada, mas o contexto torna a decisão claramente política.

A China, que há anos disputa influência estratégica com os Estados Unidos no Indo-Pacífico, acompanha com preocupação a reconfiguração da política de defesa japonesa – sobretudo as declarações da primeira-ministra Sanae Takaichi sobre reforçar o papel militar do Japão e apoiar Taiwan diante da pressão chinesa.

Para Pequim, essas mudanças são interpretadas como parte de uma estratégia mais ampla de “contensão” liderada por Washington. A aproximação militar entre Japão, Estados Unidos e outros aliados regionais, somada à possibilidade de Tóquio flexibilizar seus limites históricos em matéria de armamento, é vista como uma ameaça direta aos interesses chineses no Mar da China Oriental e no estreito de Taiwan.

Nesse cenário, o adiamento da reunião cultural não é apenas um gesto protocolar: é um sinal diplomático de desconforto e advertência. Ao atingir um espaço tradicionalmente neutro, como a cooperação cultural, a China reforça a mensagem de que o agravamento das tensões de segurança afetará gradualmente outros canais de diálogo trilateral.

Tóquio sob pressão: protestos contra a revisão da Constituição pacifista

Enquanto o sinal de alerta vinha de Pequim, o governo japonês enfrentava, em casa, outro tipo de pressão. Em Tóquio, manifestantes foram às ruas para protestar contra a agenda da primeira-ministra Sanae Takaichi, que defende uma revisão da Constituição pacifista de 1947 e uma postura mais assertiva em temas de segurança, especialmente em relação a Taiwan e à crescente presença militar chinesa na região.

A Constituição japonesa, particularmente o Artigo 9, renuncia formalmente à guerra e proíbe o país de manter forças armadas para resolver disputas internacionais. Na prática, o Japão construiu, ao longo das décadas, Forças de Autodefesa bem equipadas e tecnicamente avançadas, mas com limitações jurídicas e políticas claras.

A proposta de Takaichi e de seus aliados é reinterpretar ou revisar esse arcabouço, permitindo ao Japão:

  • Expandir o escopo de atuação das Forças de Autodefesa;
  • Fortalecer alianças militares com os Estados Unidos e outros parceiros;
  • Aumentar gastos com defesa em um ambiente regional cada vez mais tenso, marcado por testes de mísseis norte-coreanos e pela expansão militar chinesa.

Para os críticos, esse movimento representa um rompimento com o pacto pós-guerra, que fez do Japão um ator essencialmente pacifista no cenário internacional. Para apoiadores, é uma adaptação necessária à realidade do século XXI, em um ambiente estratégico bem mais perigoso do que nas décadas anteriores.

O peso moral de Hiroshima e Nagasaki: sobreviventes reagem à agenda nuclear

Se a revisão da Constituição já é um tema sensível, o debate se torna ainda mais explosivo quando entra em cena a questão nuclear. Um grupo de sobreviventes das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki – organização que já recebeu o Prêmio Nobel da Paz – criticou com veemência a intenção do governo de rever os “três princípios não nucleares” do Japão.

Esses princípios, estabelecidos na década de 1960, definem que o Japão:

  1. Não possuirá armas nucleares;
  2. Não produzirá armas nucleares;
  3. Não permitirá a entrada de armas nucleares em seu território.

Eles se tornaram um símbolo central da identidade pós-guerra do país: uma nação que, tendo sofrido com o uso de armas nucleares, assume a liderança moral na defesa do desarmamento.

Os sobreviventes argumentam que revisar esses princípios significaria trair a memória das vítimas de Hiroshima e Nagasaki, além de abrir um precedente perigosíssimo em um momento em que a proliferação nuclear volta a preocupar o mundo. Para esse grupo, qualquer flexibilização – mesmo que em forma de “debate” ou “reavaliação técnica” – pode ser o primeiro passo para uma normalização da presença nuclear na política de defesa japonesa.

Do outro lado, setores conservadores e estratégicos do establishment japonês defendem que o país, cercado por potências nucleares como China, Rússia e Coreia do Norte, não pode se dar ao luxo de manter tabus absolutos. A discussão não necessariamente implica que o Japão terá armas nucleares, mas que não deveria se autolimitar de forma tão rígida em um ambiente regional imprevisível.

Um triângulo tenso: Japão, China e Coreia do Sul

A decisão chinesa de adiar a reunião trilateral não afeta apenas as relações bilaterais entre Pequim e Tóquio, mas também coloca a Coreia do Sul em uma posição delicada.

Seul mantém:

  • Uma relação complexa com o Japão, marcada por disputas históricas e de memória sobre o período colonial;
  • Uma profunda preocupação com a ameaça nuclear e balística da Coreia do Norte;
  • E, ao mesmo tempo, uma relação econômica importante com a China, além da aliança de segurança com os Estados Unidos.

Nesse tabuleiro, qualquer movimento japonês em direção a um rearmamento mais contundente, ou a um debate sobre flexibilização dos princípios não nucleares, é acompanhado com atenção em Seul. Um Japão mais assertivo pode, ao mesmo tempo:

  • Ser visto como um contrapeso útil à China e à Coreia do Norte;
  • E gerar receios históricos e políticos na opinião pública sul-coreana, sensível a qualquer sinal de ressurgimento do militarismo japonês.

A interrupção de uma iniciativa de cooperação cultural trilateral, ainda que temporária, simboliza como o ambiente de desconfiança começa a transbordar de áreas estritamente militares para o campo mais amplo da diplomacia e do soft power.

O pano de fundo geopolítico: Taiwan, EUA e a disputa por influência

Toda essa dinâmica não pode ser entendida isoladamente. Há pelo menos três linhas de fundo que moldam o atual cenário:

  1. Taiwan
    O estreito de Taiwan é hoje um dos principais pontos de tensão global. A China considera a ilha parte de seu território e não descarta o uso da força para promover a unificação. O Japão, por sua vez, depende das rotas marítimas que passam pela região e teme que um conflito em Taiwan tenha impacto direto em sua segurança. A postura mais firme de Tóquio em relação à defesa de Taiwan é um dos fatores que irritam Pequim.
  2. Aliança com os Estados Unidos
    O Japão é um dos aliados estratégicos mais importantes de Washington na Ásia. Os Estados Unidos pressionam há anos para que Tóquio assuma mais responsabilidades em segurança regional, inclusive aumentando gastos militares. A agenda de revisão constitucional de Takaichi anda em sintonia com esse objetivo. Isso, porém, alimenta a percepção chinesa de que o Japão estaria se tornando peça-chave em uma estratégia de “cerco” à China.
  3. Corrida armamentista regional
    A combinação de testes de mísseis norte-coreanos, modernização militar chinesa e debates japoneses sobre rearmamento cria um cenário em que cada movimento de um ator é interpretado como justificativa para o outro reforçar sua própria capacidade militar. O resultado é um risco real de espiral de segurança, em que medidas defensivas de um lado são vistas como ameaças pelo outro.

Riscos e desdobramentos: o que pode acontecer a seguir?

Do ponto de vista analítico, o atual momento sugere alguns possíveis desdobramentos:

  1. Escalada gradual da desconfiança diplomática
    Se adiamentos e cancelamentos de reuniões se tornarem frequentes, a cooperação trilateral entre China, Japão e Coreia do Sul pode se fragilizar. Isso dificultaria a coordenação em temas essenciais, como comércio, mudanças climáticas e estabilidade financeira regional.
  2. Fortalecimento do debate interno no Japão
    Os protestos em Tóquio e a reação dos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki indicam que a sociedade japonesa está longe de um consenso sobre a agenda de Takaichi. O tema pode se tornar um dos principais divisores de água na política doméstica, definindo alianças, eleições e a própria identidade nacional.
  3. Pressão sobre a Coreia do Sul
    Seul pode se ver obrigada a equilibrar ainda mais delicadamente suas relações com Pequim, Tóquio e Washington. Um Japão mais assertivo e uma China mais reativa dificultam a margem de manobra sul-coreana.
  4. Repercussão global do debate nuclear japonês
    Qualquer passo do Japão em direção a uma flexibilização de seus princípios não nucleares terá impacto além da Ásia. Países europeus, organizações de desarmamento e a própria ONU acompanham o tema com atenção, pois o Japão sempre foi um símbolo de compromisso com o não uso de armas atômicas.

Conclusão: entre o passado pacifista e um futuro incerto

O momento que o Japão vive hoje é, ao mesmo tempo, político, estratégico e profundamente simbólico. A nação que se reconstruiu após a devastação nuclear como um país pacifista se encontra, agora, diante de um ambiente regional marcado por rivalidades, disputas territoriais, corrida tecnológica e pressão de aliados.

A tensão com a China e a Coreia do Sul, o adiamento de reuniões trilaterais, os protestos em Tóquio e a indignação dos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki não são eventos isolados. São peças de um quadro maior, no qual o Japão precisa decidir até que ponto está disposto a revisar os limites que se impôs no pós-guerra e qual será o custo dessa transformação — interna e externamente.

Para a geopolítica asiática, a resposta a essa pergunta terá efeitos duradouros. Um Japão mais militarmente assertivo pode conter ameaças e equilibrar o poder na região, mas também pode alimentar uma nova fase de desconfiança, competição e instabilidade em um dos pontos mais sensíveis do mapa global.

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