O Parlamento da Letônia aprovou, nesta semana, a retirada do país da Convenção de Istambul — o principal tratado europeu destinado a combater a violência contra mulheres e a violência doméstica. A decisão, que surpreendeu parte da comunidade internacional, reacende um debate profundo no continente sobre soberania nacional, valores sociais e a influência das normas internacionais em políticas domésticas.
Um tratado que simboliza o compromisso europeu contra a violência de gênero
A Convenção de Istambul, adotada pelo Conselho da Europa em 2011, é considerada o primeiro instrumento jurídico vinculante a estabelecer normas abrangentes para prevenir e combater a violência contra mulheres.
Ela obriga os países signatários a garantir proteção legal às vítimas, investigar e punir os agressores e promover políticas públicas de igualdade de gênero.
A Letônia ratificou o tratado apenas em 2023, após anos de resistência interna. À época, o governo alegava que a adesão representava um passo necessário para fortalecer o combate à violência doméstica, um problema que afeta milhares de mulheres no país báltico. No entanto, menos de dois anos depois, o Parlamento letão decidiu reverter o compromisso, tornando-se o primeiro Estado-membro da União Europeia a deixar formalmente a Convenção.
Argumentos internos: entre soberania e identidade nacional
Os parlamentares que apoiaram a retirada justificaram a medida com base em questões de soberania e valores culturais.
Segundo o governo letão, as obrigações impostas pelo tratado interferem em assuntos que deveriam ser regulados por legislações nacionais, especialmente no que se refere à definição de “gênero” e às políticas educacionais.
Deputados conservadores afirmaram que o texto da Convenção contém “elementos ideológicos” que poderiam ser interpretados como uma promoção de “valores não tradicionais” — expressão usada em debates políticos para se referir a pautas de igualdade de gênero e direitos LGBTQIA+.
Esses grupos defendem que a Letônia deve criar seu próprio sistema de proteção contra a violência doméstica, sem seguir um modelo considerado “externo” ou “imposto” por organismos internacionais.
Reações e críticas: “um retrocesso nos direitos das mulheres”
A decisão provocou reações imediatas dentro e fora do país.
Organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional e o Conselho da Europa, classificaram o movimento como um retrocesso grave na proteção das vítimas de violência doméstica.
Para a secretária-geral do Conselho da Europa, Marija Pejčinović Burić, a saída da Letônia “enfraquece os esforços conjuntos para eliminar a violência baseada em gênero e envia uma mensagem perigosa para outros governos que enfrentam pressões políticas semelhantes”.
Ativistas locais ressaltam que o número de casos de violência doméstica na Letônia continua alto, e temem que a retirada reduza a capacidade do Estado de oferecer apoio psicológico, jurídico e social às vítimas.
Grupos feministas também alertam que a decisão pode incentivar outros governos europeus de perfil conservador a reconsiderar seus compromissos com a Convenção.
Contexto regional: um espelho de tensões políticas na Europa
O caso da Letônia não é isolado. Em vários países da Europa Central e Oriental — incluindo Hungria, Eslováquia e Polônia — a Convenção de Istambul se tornou um símbolo de disputa política entre setores liberais e conservadores.
Enquanto uns veem o tratado como uma ferramenta essencial para combater a violência e promover a igualdade, outros o consideram uma ameaça à soberania e às tradições culturais.
Na Hungria, por exemplo, o governo de Viktor Orbán nunca ratificou a Convenção, alegando que o texto “promove ideologias de gênero” incompatíveis com a Constituição do país. Já na Polônia, em 2020, o governo chegou a anunciar que estudava uma retirada formal, embora a medida não tenha sido concretizada.
A decisão da Letônia, portanto, pode revigorar essa agenda conservadora, reforçando uma divisão ideológica que vem crescendo dentro da União Europeia.
Impactos diplomáticos e imagem internacional
A retirada da Letônia tem também implicações diplomáticas significativas.
Ao se afastar de um tratado que é amplamente apoiado pelas instituições europeias, o país arrisca-se a enfraquecer sua imagem como membro comprometido com os valores democráticos e os direitos humanos, princípios fundamentais da União Europeia.
Bruxelas ainda não comentou oficialmente se a medida pode gerar consequências políticas ou financeiras, mas observadores afirmam que o episódio deve aumentar a tensão entre Riga e as instituições europeias em um momento de crescente polarização interna no bloco.
Além disso, o movimento ocorre em um contexto mais amplo de redefinição das prioridades europeias — entre defesa, economia e direitos civis — e pode reacender discussões sobre o papel dos tratados multilaterais em um cenário de reações nacionalistas.
Um teste para o equilíbrio entre valores e soberania
A decisão da Letônia representa mais do que uma simples mudança jurídica. Ela simboliza um teste político e moral para a Europa contemporânea: até que ponto os países estão dispostos a conciliar valores universais de direitos humanos com suas identidades e tradições nacionais?
Enquanto organizações internacionais pedem a reversão da medida, o governo letão insiste que continuará comprometido com a proteção das vítimas — mas sob um modelo “nacional e soberano”.
O desafio, agora, será provar que esse compromisso pode se traduzir em políticas eficazes, sem o respaldo e as diretrizes de um tratado internacional que, há mais de uma década, se tornou o marco europeu na luta contra a violência de gênero.
Conclusão
A retirada da Letônia da Convenção de Istambul é um marco simbólico com efeitos concretos: sinaliza um reforço das narrativas de soberania e valores nacionais frente a normas internacionais, ao mesmo tempo em que expõe fragilidades na proteção institucional às vítimas de violência de gênero. Resta ao governo provar — por meio de políticas públicas, financiamento a serviços de acolhimento, formação de forças de segurança e mecanismos jurídicos eficazes — que a alternativa “nacional” prometida será capaz de proteger quem mais precisa. Para a União Europeia e para organizações de direitos humanos, o caso é um alerta: a construção de consensos básicos sobre direitos fundamentais continua sendo uma tarefa política delicada e inacabada. A disputa na Letônia, portanto, deverá permanecer no centro do debate europeu nos próximos meses, com possíveis repercussões legais, sociais e diplomáticas que ainda vão se desenrolar.

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