Nigéria rejeita ameaças dos EUA e pede aliança em segurança para conter a violência

Mohammed Idris Malagi, ministro da Informação da Nigéria, durante coletiva de imprensa
Mohammed Idris Malagi, ministro da Informação da Nigéria, defende cooperação em segurança com os Estados Unidos em vez de ameaças de intervenção. [Foto: Marvellous Durowaiye/Reuters]

O governo da Nigéria reagiu com firmeza às recentes declarações de políticos e autoridades nos Estados Unidos que falam em “genocídio contra cristãos” e sugerem possíveis ações militares no país africano. Em vez de retórica de confronto, Abuja afirma querer mais cooperação em segurança com Washington para conter ataques de grupos armados, insurgências jihadistas e violência intercomunal que assolam várias regiões do país. A posição nigeriana, apresentada publicamente pelo ministro da Informação, Mohammed Idris Malagi, expõe uma disputa narrativa com setores do establishment político norte-americano e revela o esforço de Abuja para manter sua soberania ao mesmo tempo em que busca apoio externo contra uma crise multifacetada de segurança.

O gatilho da tensão: “genocídio de cristãos” e ameaça de intervenção

Nas últimas semanas, o debate entre Nigéria e Estados Unidos foi inflamado por discursos de Donald Trump e de parlamentares norte-americanos que acusam o governo nigeriano de permitir um suposto “genocídio de cristãos” no país. Essas falas vieram acompanhadas de ameaças de:

  • colocar a Nigéria em listas de vigilância por violações de liberdade religiosa;
  • cortar ajuda e cooperação;
  • até considerar ações militares sob pretexto de proteger cristãos nigerianos.

Essa narrativa se apoia em episódios reais de violência religiosa, ataques a igrejas e comunidades cristãs – mas frequentemente simplifica um cenário muito mais complexo, em que muçulmanos e cristãos são vítimas de uma mesma espiral de insegurança, banditismo, conflitos entre pastores e agricultores, além da ação de grupos jihadistas no norte e centro do país.

. A resposta de Abuja: cooperação sim, tutelagem não

Diante desse quadro, o ministro da Informação da Nigéria, Mohammed Idris Malagi, concedeu declarações à imprensa enfatizando que o governo rejeita a ideia de genocídio religioso e não aceita a premissa de que o país estaria deliberadamente perseguindo cristãos.

A mensagem central de Abuja é dupla:

  1. A crise de segurança é real, mas atinge nigerianos de diferentes etnias e religiões;
  2. A Nigéria não quer ameaças de invasão, e sim parcerias estratégicas, em especial com os EUA, para:
    • reforçar inteligência e capacitação das forças de segurança;
    • melhorar o combate a grupos jihadistas e quadrilhas armadas;
    • apoiar políticas de desenvolvimento em regiões vulneráveis.

Ao ecoar essa posição, o governo nigeriano tenta equilibrar dois objetivos:

  • Preservar a soberania nacional, deixando claro que qualquer apoio externo deve respeitar a autoridade do Estado nigeriano;
  • Não romper com Washington, de quem ainda precisa em áreas-chave, como treinamento militar, equipamentos, cooperação em inteligência e apoio diplomático.

Uma crise de segurança multidimensional: jihadismo, banditismo e conflitos locais

Para entender por que a Nigéria insiste tanto em cooperação, é preciso olhar a complexidade da sua crise de segurança. O país enfrenta, ao mesmo tempo:

  • Insurgência jihadista no nordeste e em áreas do norte e noroeste, envolvendo grupos como Boko Haram e Estado Islâmico na África Ocidental;
  • Conflitos entre pastores e agricultores (principalmente fulanis e comunidades agrícolas), que têm forte componente étnico, territorial e, às vezes, religioso;
  • Banditismo armado e sequestros em massa, especialmente no noroeste, com ataques a vilarejos e a escolas, resultando em centenas de mortos e sequestrados ao longo dos últimos anos;
  • Violência intercomunal e religiosa, em algumas regiões mistas do cinturão central, onde tensões históricas são exploradas por grupos armados e políticos locais.

Esse mosaico de conflitos tornou o país um dos pontos mais críticos de insegurança na África, com milhares de mortos, deslocados internos e crises humanitárias localizadas. O governo federal, liderado pelo presidente Bola Tinubu, tenta mostrar que tem um plano para enfrentar a situação – mas enfrenta limitações de recursos, desafios de coordenação entre forças militares e policiais, e problemas de confiança com comunidades locais.

Por que a narrativa de “genocídio cristão” é tão sensível?

A ideia de que há um “genocídio de cristãos” em curso na Nigéria é especialmente delicada porque conecta:

  • a política interna dos Estados Unidos, em que segmentos conservadores e evangélicos colocam a perseguição a cristãos no centro da agenda internacional;
  • a disputa geopolítica, na qual Washington pode ser pressionado a adotar posições intervencionistas sob o argumento da proteção religiosa;
  • a realidade complexa nigeriana, em que comunidades cristãs e muçulmanas sofrem com violência, e qualquer simplificação pode aprofundar divisões.

Abuja teme que essa narrativa:

  • altere a percepção pública internacional da Nigéria, reduzindo o país a um cenário de guerra religiosa;
  • alimente a polarização interna, se grupos extremistas passarem a usar essa retórica com fins políticos;
  • sirva de justificativa para medidas unilaterais de Washington que não levem em conta a soberania e a visão do governo nigeriano.

Por isso, o ministro da Informação faz questão de refutar a tese de genocídio e reforçar que a prioridade é “cooperação, não ameaças”.

O que a Nigéria quer dos EUA: parceria de segurança, não ocupação

Na prática, quando Abuja fala em “cooperação, não ameaças”, está pedindo:

  1. Mais apoio técnico e de inteligência
    • Compartilhamento de informações sobre redes jihadistas e criminosas;
    • Treinamento especializado para forças nigerianas em contraterrorismo, policiamento comunitário e operações de resgate.
  2. Assistência em equipamentos e tecnologia
    • Drones de vigilância, sistemas de monitoramento, equipamentos de comunicações;
    • Modernização de capacidades aéreas e terrestres.
  3. Apoio ao desenvolvimento e à resiliência comunitária
    • Projetos que reduzam o recrutamento por grupos armados, oferecendo alternativas econômicas e reforçando serviços públicos (educação, saúde, infraestrutura);
    • Programas de reconciliação e construção de paz em comunidades afetadas.
  4. Respeito à soberania nigeriana
    • Rejeição a qualquer discurso que sugira envio de tropas sem convite ou mandato internacional;
    • Reconhecimento de que a Nigéria é um ator regional central, não apenas um “problema de segurança” a ser administrado de fora.

Essa linha se alinha a declarações anteriores de autoridades nigerianas, que já haviam sinalizado que aceitam apoio dos EUA, mas apenas dentro de parâmetros que não comprometam a autonomia política e militar do país.

Disputa de narrativas: quem define o que acontece na Nigéria?

A controvérsia também é uma batalha de narrativas:

  • De um lado, políticos e grupos de pressão nos EUA pintam um quadro de “cristãos massacrados”, pedindo ações duras e imediatas;
  • De outro, o governo nigeriano tenta enquadrar o problema como uma crise nacional de segurança, com múltiplas vítimas e fatores, que deve ser resolvida com apoio, não punição.

Essa disputa tem impacto em três níveis:

  1. Interno nos EUA – influencia debates eleitorais, agendas de grupos religiosos e o posicionamento de congressistas;
  2. Interno na Nigéria – afeta como o governo é visto pela população (forte e soberano, ou fraco e submisso a potências externas);
  3. Internacional – molda a forma como organismos multilaterais, ONGs e outros Estados percebem a legitimidade e a eficácia das políticas de segurança nigerianas.

Ao defender “cooperação, não ameaças”, Abuja quer mostrar à sua própria sociedade e ao continente africano que não aceita ser tratado como protetorado ou palco de aventuras militares externas, especialmente sob justificativas simplificadas sobre religião.

O que está em jogo para a Nigéria e para os EUA?

Para a Nigéria, o que está em jogo é:

  • Sobrevivência política do governo, que precisa mostrar resultados no combate à violência sem perder legitimidade interna;
  • Posição regional, já que é a maior economia e uma das principais potências militares da África Ocidental;
  • Preservação da coesão social, num país profundamente diverso em termos étnicos e religiosos.

Para os Estados Unidos, os interesses incluem:

  • Manter influência estratégica em um país-chave na África, rico em população, recursos naturais e com papel central na luta contra grupos jihadistas;
  • Responder à pressão doméstica de setores que demandam maior atenção à perseguição de cristãos e a violações de liberdade religiosa;
  • Evitar mais um atoleiro militar, caso a retórica de intervenção extrapole a realidade e crie expectativas de ação que Washington, na prática, não esteja disposto a cumprir.

A relação bilateral, portanto, caminha sobre uma linha fina: ou se reforça como aliança estratégica contra a violência e o extremismo, ou se degrada em desconfiança mútua alimentada por discursos inflamados.

Perspectivas: cooperação real ou escalada retórica?

Os próximos meses devem mostrar se prevalecerá:

  • O caminho da cooperação, com fortalecimento de mecanismos de diálogo, apoio técnico e programas de desenvolvimento; ou
  • A escalada retórica, em que ameaças, acusações e simplificações religiosas dominem o discurso, dificultando soluções concretas.

Alguns sinais a observar:

  • A intensidade da violência em estados críticos do norte e noroeste da Nigéria;
  • A forma como o governo Tinubu responde a novos ataques – com mais eficácia e respeito a direitos humanos, ou com ações que possam gerar novas críticas;
  • O tom dos próximos discursos de autoridades norte-americanas, especialmente se houver novo acirramento do debate interno nos EUA sobre “perseguição a cristãos” na Nigéria.

Conclusão

Ao rejeitar a narrativa de “genocídio cristão” e demandar “cooperação, não ameaças” dos Estados Unidos, a Nigéria tenta redefinir os termos da relação com Washington: não como um país passivo à espera de ser “salvo”, mas como um Estado soberano que busca parceiros para enfrentar uma crise interna complexa.

O recado de Abuja é claro: a violência no país é grave, mas não cabe a atores externos impor soluções pela força com base em leituras parciais da realidade religiosa nigeriana. Se Washington conseguir ouvir essa mensagem e apostar em aliança em segurança, desenvolvimento e diplomacia, a relação pode sair fortalecida. Se prevalecerem as ameaças, a consequência pode ser uma Nigéria mais desconfiada, uma população ainda mais vulnerável – e um continente africano atento a como grandes potências tratam seus parceiros quando a narrativa doméstica entra em choque com a realidade no terreno.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*