O Paquistão voltou a colocar a estabilidade regional no centro de sua diplomacia ao reforçar, em encontro com o secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, o compromisso de trabalhar por um “Sul da Ásia pacífico e estável”. A mensagem foi transmitida pelo vice-primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores, Ishaq Dar, durante reunião na sede da aliança em Bruxelas, nesta quinta-feira, 20 de novembro de 2025.
O gesto ocorre em um momento delicado: poucos meses após o cessar-fogo entre Índia e Paquistão em 2025, em meio ao avanço de uma grande operação antiterrorismo dentro do território paquistanês e a um contexto regional marcado por disputas de poder entre grandes potências.
Mais do que uma frase diplomática, a promessa de “paz e estabilidade” expõe as contradições da política de segurança paquistanesa, a disputa narrativa com a Índia e o esforço de Islamabad para se reposicionar diante da OTAN e do Ocidente sem romper sua proximidade com a China.
O encontro em Bruxelas: mensagem de estabilidade e combate ao terrorismo
Segundo comunicado das autoridades paquistanesas, Ishaq Dar destacou ao secretário-geral da OTAN que o Paquistão “deseja e trabalha por um Sul da Ásia pacífico e estável”, ressaltando a importância de diálogo construtivo e cooperação regional.
No encontro, o vice-primeiro-ministro também:
- Reafirmou o compromisso “inquebrantável” do Paquistão no combate ao terrorismo, citando operações em curso contra grupos armados no país;
- Enfatizou o papel do Paquistão em iniciativas de paz e estabilidade regional, incluindo o apoio a processos políticos no Afeganistão;
- Sinalizou interesse em aprofundar a cooperação com a OTAN em áreas como diálogo político, segurança regional e, possivelmente, treinamento e capacitação.
Do lado da OTAN, Mark Rutte elogiou as “contribuições do Paquistão para a paz e a estabilidade regional” e reconheceu os sacrifícios feitos pelo país em operações antiterrorismo ao longo das últimas duas décadas.
Na prática, o encontro serve para reforçar um canal de comunicação que já existe há anos entre OTAN e Paquistão, mas que ganha novo peso diante da crescente importância do eixo Índico–Indo-Pacífico para a agenda de segurança da aliança.
Sul da Ásia: uma região marcada por rivalidades e desconfiança
Quando o Paquistão fala em “Sul da Ásia pacífico e estável”, a expressão carrega um histórico de conflitos, crises e acordos precários. A região concentra alguns dos pontos de tensão mais sensíveis do sistema internacional:
- A disputa territorial e política entre Índia e Paquistão, centrada principalmente na Caxemira;
- A presença de três potências nucleares no entorno (Índia, Paquistão e China), com rivalidades e alianças cruzadas;
- A instabilidade no Afeganistão, que impacta fortemente a segurança paquistanesa;
- Movimentos separatistas e extremistas em áreas como Balochistão e regiões fronteiriças.
Em 2025, a trégua firmada entre Índia e Paquistão, após uma escalada de confrontos e ataques, foi saudada por diversos países e pela ONU como um passo importante para “sair da espiral de escalada”.
Ao mencionar paz e estabilidade ao chefe da OTAN, Ishaq Dar buscou:
- Reforçar a imagem de que o Paquistão não quer retorno a uma escalada militar com a Índia;
- Sugerir que Islamabad está comprometido com o cumprimento de compromissos de cessar-fogo e com a redução de tensões na Linha de Controle (LoC);
- Apresentar o país como parceiro responsável, em contraste com a narrativa indiana que frequentemente acusa o Paquistão de apoiar grupos armados.
Operação Azm-e-Istehkam: estabilidade interna como peça da narrativa
A defesa de um “Sul da Ásia estável” também se conecta à política interna paquistanesa, em particular à Operação Azm-e-Istehkam, lançada em 2024 como uma grande campanha de combate ao terrorismo e à insurgência em áreas como Khyber Pakhtunkhwa e Balochistão.
Segundo dados oficiais, a operação combina:
- Ações militares contra grupos jihadistas e separatistas;
- Esforços de “uplift socioeconômico” (melhorias sociais e econômicas) para reduzir a base de apoio a extremistas;
- Cooperação entre forças armadas, polícia, agências de inteligência e autoridades regionais.
Para Islamabad, essas operações são prova de que o país está pagando um preço alto pela luta contra o terrorismo, tanto em vidas militares quanto civis, e que por isso merece reconhecimento internacional e apoio – discurso reforçado nas conversas com a OTAN.
No entanto, críticos apontam que:
- A militarização prolongada de certas áreas aprofunda ressentimentos locais;
- Denúncias de violações de direitos humanos, desaparecimentos forçados e repressão a ativistas baloches enfraquecem a narrativa de “estabilidade”;
- Sem um processo político inclusivo e reformas estruturais, o componente militar tende a ter efeito limitado no longo prazo.
Assim, a mensagem de “paz e estabilidade” funciona também como recurso diplomático para suavizar percepções externas sobre o uso da força dentro do país.
Índia e Paquistão: cessar-fogo frágil e disputa de narrativas
O pano de fundo da fala de Ishaq Dar é a relação com a Índia, marcada por desconfiança crônica. A trégua de 2025 – mediada e apoiada por várias potências – foi apresentada como um “primeiro passo” para reduzir o risco de escalada, especialmente diante do fato de que ambos são Estados nucleares.
Desde então:
- Diplomatas paquistaneses insistem na necessidade de diálogo abrangente, incluindo Caxemira e outros “problemas de longa data”;
- A Índia, por sua vez, enfatiza que o foco deve ser o combate ao terrorismo e acusa o Paquistão de ainda tolerar ou apoiar grupos hostis ao território indiano;
- Episódios isolados de violência na região disputada e incidentes na Linha de Controle lembram que o cessar-fogo é, na prática, frágil e reversível.
Quando o Paquistão leva à OTAN o discurso de “estabilidade”, busca:
- Ganhar legitimidade internacional, apresentando-se como ator responsável que respeita o cessar-fogo;
- Influenciar percepções ocidentais, para contrapor a narrativa indiana;
- Reforçar que a comunidade internacional tem interesse direto na manutenção da paz entre dois Estados com armas nucleares, em uma região densamente povoada.
OTAN e Sul da Ásia: interesse crescente, limites claros
Embora a OTAN seja uma aliança atlântica, seu olhar para além da Europa vem se ampliando, incluindo diálogos com parceiros na Ásia. Relatórios recentes indicam que a aliança começou a discutir mais ativamente a região do Indo-Pacífico, as implicações da ascensão chinesa e a estabilidade em áreas vizinhas, como o Sul da Ásia.
Nesse contexto, o Paquistão aparece como:
- Parceiro estratégico em rotas de comércio e comunicação entre Ásia Central, Oriente Médio e Oceano Índico;
- Estado-chave em qualquer discussão sobre Afeganistão, terrorismo transnacional e fluxos de refugiados;
- País que mantém uma relação profunda com a China, o que torna qualquer aproximação com a OTAN delicada e cheia de nuances.
Para a OTAN, o interesse é:
- Acompanhar de perto a dinâmica entre Índia, Paquistão e China;
- Garantir que crises regionais não gerem impactos diretos sobre aliados ou missões ocidentais;
- Explorar cooperação prática limitada, em temas como combate ao terrorismo, segurança marítima, resiliência e diálogo político.
Ao mesmo tempo, há limites claros: uma presença militar direta da OTAN no Sul da Ásia seria vista com extrema desconfiança por atores como a China e até por parte da opinião pública paquistanesa e indiana.
A disputa pela narrativa de “paz”
Um ponto central é que “paz” e “estabilidade” se tornaram conceitos disputados no Sul da Ásia. Cada ator procura se apresentar como o verdadeiro defensor desses valores:
- Paquistão: enfatiza sacrifícios no combate ao terrorismo, apoio a processos políticos e defesa de diálogo com a Índia – ao mesmo tempo em que é acusado de manter vínculos com grupos militantes e enfrenta denúncias de repressão interna;
- Índia: argumenta que sua postura firme é necessária para conter o terrorismo e preservar a integridade territorial, mas é criticada por políticas de endurecimento em Caxemira e por limitações a liberdades civis;
- Potências externas (EUA, União Europeia, OTAN): adotam discurso de incentivo ao diálogo e ao respeito ao cessar-fogo, mas cada vez mais calculam sua atuação olhando também para a relação com a China e para o equilíbrio no Indo-Pacífico.
Nesse jogo, o encontro em Bruxelas ajuda o Paquistão a mostrar ao público externo – especialmente no Ocidente – que não quer ser visto apenas pela lente do conflito com a Índia ou do extremismo interno, mas como um ator que pode contribuir para a segurança regional.
O que pode vir a seguir?
Alguns possíveis desdobramentos podem ser observados a partir desse encontro:
- Maior diálogo político entre OTAN e Paquistão
A tendência é de aprofundar o intercâmbio de avaliações sobre segurança regional, terrorismo e estabilidade afegã, sem necessariamente avançar para compromissos militares formais. - Pressão para manter o cessar-fogo com a Índia
Ao se apresentar como defensor de um Sul da Ásia estável, o próprio Paquistão aumenta a pressão sobre si mesmo para evitar incidentes que possam ser interpretados como violação do cessar-fogo ou apoio a grupos armados. - Equilíbrio delicado com a China
Islamabad terá de calibrar cuidadosamente qualquer aproximação com a OTAN para não afetar sua relação com Pequim, principal parceiro econômico e militar, sobretudo dentro da iniciativa do Corredor Econômico China–Paquistão (CPEC). - Debate interno sobre segurança e direitos
A ênfase externa em “paz e estabilidade” pode reacender debates internos sobre o custo humano e político de operações como a Azm-e-Istehkam, a situação em Balochistão e a necessidade de reformas políticas mais profundas.
Conclusão: entre o discurso de paz e a realidade no terreno
Ao reafirmar diante do secretário-geral da OTAN seu desejo de um “Sul da Ásia pacífico e estável”, o Paquistão busca reposicionar sua imagem internacional e mostrar que está alinhado, ao menos no discurso, com uma agenda de responsabilidade regional.
No entanto, a realidade no terreno é complexa: cessar-fogos frágeis com a Índia, operações antiterrorismo em andamento, tensões em áreas periféricas, o impacto da guerra no Afeganistão e a crescente disputa entre grandes potências projetam sombras sobre essa visão de estabilidade.
O encontro em Bruxelas não resolve essas contradições, mas revela como a batalha pela narrativa — quem é visto como defensor da paz, quem provoca instabilidade — passou a ser uma parte central da geopolítica do Sul da Ásia. Para Islamabad, o desafio é transformar esse discurso em política concreta, sem perder o equilíbrio entre segurança, direitos internos e jogos de poder entre OTAN, Índia e China.

Faça um comentário