Proposta em circulação, apoiada por Washington, prevê concessões territoriais a Moscou e causa forte reação em capitais europeias, que reclamam de exclusão das negociações e temem impactos na segurança do continente e no setor de defesa.
A circulação de um suposto plano de paz para a Ucrânia, associado à administração Donald Trump e apoiado por setores em Washington, abriu uma nova frente de tensão no continente europeu. O esboço do plano, segundo reportagens da imprensa europeia e internacional, inclui concessões territoriais à Rússia, especialmente em áreas ocupadas no leste da Ucrânia, como partes do Donbass, em troca de um cessar-fogo e de garantias de segurança mais vagas.
A proposta, ainda não oficialmente apresentada, já provoca reação negativa em vários governos europeus, que se dizem preocupados tanto com o conteúdo do plano quanto com o processo de negociação, do qual a Europa e o próprio governo ucraniano parecem ter sido em grande parte deixados de fora. Ao mesmo tempo, o simples rumor de um acordo vem mexendo com os mercados: ações de empresas de defesa europeias registraram quedas, refletindo o temor de redução futura em encomendas militares ligadas à guerra.
O que se sabe sobre o plano de paz
De acordo com informações divulgadas por veículos como o Euractiv, o plano em discussão seria um documento em vários pontos que procura encerrar a guerra impondo um congelamento da linha de frente e consolidando, na prática, o controle russo sobre partes do território ucraniano hoje ocupadas.
Entre os elementos centrais estariam:
- Reconhecimento de fato do controle russo sobre áreas ocupadas no leste da Ucrânia, em especial regiões do Donbass;
- Um possível estatuto especial para algumas dessas áreas, com algum grau de autonomia sob forte influência de Moscou;
- A promessa de cessar-fogo duradouro, com mecanismos de monitoramento internacional;
- Uma discussão vaga sobre garantias de segurança para a Ucrânia, sem, porém, prometer adesão à OTAN em curto prazo;
- Compromissos para flexibilizar ou rever sanções econômicas contra a Rússia, à medida que o acordo fosse implementado.
Embora os detalhes variem conforme a fonte, a lógica geral é a de um acordo que congela o conflito nos termos hoje mais favoráveis a Moscou, em nome de “paz rápida” e alívio de tensões globais. Isso colide diretamente com a posição repetida de Kiev de que não aceitará ceder território soberano como preço da paz.
A reação europeia: exclusão, desconfiança e sensação de déjà vu
Em várias capitais europeias, o plano foi recebido com desconfiança e, em alguns casos, com irritação aberta. Autoridades especialmente na Polônia, Alemanha e países bálticos criticam dois pontos principais:
- O conteúdo – a ideia de legitimar conquistas territoriais obtidas pela força é vista como um precedente extremamente perigoso para a segurança europeia;
- O processo – a percepção de que decisões cruciais estão sendo gestadas em Washington e Moscou, sem participação plena da Europa e, sobretudo, sem a Ucrânia como ator central.
Fontes citadas pela imprensa britânica relatam que diplomatas europeus se queixam de terem sido “informados depois” ou apenas de forma superficial sobre as conversas em torno do documento. Em vez de um processo multilateral, sob guarda-chuva da ONU ou com envolvimento robusto da UE, o que se desenha é a imagem de um “acordo entre grandes potências”, no qual a Ucrânia correria o risco de ser tratada mais como objeto do que como sujeito das negociações.
Essa percepção desperta memórias incômodas na história europeia, evocando comparações com acordos feitos sobre países menores, sem eles na mesa, em momentos-chave do século XX. Ainda que as circunstâncias sejam diferentes, a simbologia política pesa.
A posição da Ucrânia: soberania não é moeda de troca
O governo ucraniano, ao longo de toda a guerra, tem repetido que não aceitará ceder território reconhecido internacionalmente como parte de um acordo de paz. O presidente Volodymyr Zelensky já afirmou, em diversas ocasiões, que qualquer proposta que envolva capitulação territorial representaria o “fim da Ucrânia como a conhecemos”, além de incentivar outras agressões no futuro.
A exigência ucraniana é de que:
- A Rússia retire suas tropas de áreas ocupadas após 2014, incluindo partes do Donbass e a Crimeia;
- Haja garantias concretas de segurança, que impeçam Moscou de retomar as hostilidades após uma pausa;
- A Ucrânia seja integrada a estruturas ocidentais, incluindo OTAN e União Europeia, em algum horizonte de tempo negociado.
Nesse contexto, um plano que pressiona Kiev a aceitar concessões territoriais permanentes encontra resistência não apenas no governo, mas também na sociedade ucraniana, marcada por anos de guerra, perdas humanas e destruição de infraestrutura.
Dilema europeu: paz rápida vs. segurança a longo prazo
Para os países europeus, o debate sobre o plano escancara um dilema estratégico:
- De um lado, há cansaço com a guerra, pressão orçamentária, custos energéticos e o impacto prolongado das sanções na economia;
- De outro, existe o medo de que uma paz construída sobre cessões forçadas sinalize para Moscou – e para outras potências revisionistas – que a força compensa, abrindo espaço para novos conflitos no futuro.
Governos do leste europeu, como Polônia e Estados bálticos, veem o conflito na Ucrânia como linha de frente da sua própria segurança. Para eles, ceder território hoje significaria incentivar a Rússia a testar os limites da OTAN amanhã.
Já em países da Europa Ocidental, há uma divisão mais sutil. Parte da elite política e econômica vê com bons olhos qualquer iniciativa que reduza o risco de escalada e estabilize preços de energia, mas mesmo nesses círculos há grande preocupação em não legitimar anexações.
No plano institucional, a União Europeia tem insistido na narrativa de que “nada sobre a Ucrânia pode ser decidido sem a Ucrânia”, tentando reforçar tanto a sua própria relevância diplomática quanto o respeito ao princípio de soberania.
Efeitos imediatos nos mercados: queda nas ações de empresas de defesa
Enquanto diplomatas trocam recados, os mercados financeiros já reagiram aos rumores de paz. Empresas europeias do setor de defesa – que vinham registrando forte valorização desde o início da guerra, impulsionadas por encomendas de munições, sistemas de defesa aérea e blindados – enfrentaram quedas nas bolsas após a intensificação das notícias sobre o plano.
Segundo informações da agência Reuters, ações de grandes fabricantes de armamentos na Europa recuaram diante do temor de que um eventual acordo de paz leve, nos próximos anos, a:
- Redução do ritmo de encomendas ligadas diretamente ao conflito na Ucrânia;
- Reavaliação de orçamentos de defesa em alguns países, especialmente os mais pressionados fiscalmente;
- Possível mudança no perfil da demanda – menos armas para conflito de alta intensidade imediato e mais foco em modernização tecnológica, ciberdefesa e dissuasão de longo prazo.
É importante notar, porém, que mesmo com um plano de paz, dificilmente os países europeus retornarão aos baixos níveis de gasto militar pré-2014. A percepção de ameaça em relação à Rússia, a necessidade de reabastecer estoques já utilizados e a pressão da OTAN para atingir a meta de 2% do PIB em defesa devem manter o setor em patamar elevado, ainda que com oscilações de curto prazo.
O papel dos Estados Unidos e a margem de manobra da Europa
O fato de o plano ser associado à administração Trump e a círculos de poder em Washington reforça um ponto sensível para a Europa: a dependência estratégica dos Estados Unidos, tanto em termos militares quanto diplomáticos.
- Sem o apoio americano, a capacidade de a Europa sustentar a Ucrânia militarmente é limitada, apesar dos esforços de aumento de produção de munições e equipamentos dentro da UE;
- Ao mesmo tempo, muitos líderes europeus temem que Washington possa impor ou acelerar um acordo de paz baseado em seus próprios cálculos internos – incluindo política doméstica, eleições e prioridades globais.
Isso coloca a Europa em uma posição delicada: precisa mostrar unidade e capacidade de agir como bloco, para evitar ser apenas espectadora de um acordo que afetará diretamente sua segurança, mas enfrenta divisão interna sobre qual deve ser o “ponto aceitável” de compromisso com Moscou.
O que está em jogo para a ordem internacional
O debate em torno do plano de paz vai além da Ucrânia e da Europa. Ele toca em questões centrais da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial:
- A ideia de que fronteiras não podem ser alteradas pela força;
- O papel de organismos multilaterais, como ONU e OSCE, em processos de paz;
- A credibilidade de garantias de segurança ocidentais dadas a países fora do núcleo da OTAN.
Se um acordo for firmado consolidando ganhos territoriais resultantes da invasão, críticos argumentam que isso poderia enfraquecer a arquitetura de segurança global, incentivando outros atores a usar a força para rever fronteiras. Por outro lado, defensores de uma solução “realista” argumentam que, diante do impasse no campo de batalha, buscar um cessar-fogo imperfeito é preferível a um conflito prolongado e imprevisível.
Cenários possíveis
Embora ainda haja muita incerteza, alguns cenários podem ser esboçados:
- Acordo parcial com forte resistência europeia
Um plano é formalizado, mas enfrenta resistência em várias capitais europeias e em Kiev. A negociação se arrasta, e o impacto prático é mais uma redução gradual da intensidade dos combates do que um tratado de paz definitivo. - Paz “imposta” com concessões territoriais
Sob forte pressão de Washington e de alguns atores europeus, Kiev aceita um acordo que congela a linha de frente. A curto prazo, há alívio internacional; a longo prazo, cresce o risco de conflitos recorrentes e de erosão da confiança na ordem internacional. - Rejeição do plano e prolongamento da guerra
Se Ucrânia e principais países da UE rejeitarem as bases do plano, a guerra continua, possivelmente com flutuações de intensidade. A Europa segue investindo pesado em defesa, enquanto a fatiga política e social aumenta.
Em qualquer um desses cenários, a guerra já terá produzido um efeito irreversível: a Europa entrou em uma nova era de rearmamento e rivalidade estratégica, na qual a relação com a Rússia e a dependência em relação aos Estados Unidos continuarão a ser temas centrais.
Conclusão
O plano de paz em discussão para a Ucrânia, associado à administração Trump, funciona hoje menos como uma proposta concreta e mais como um teste político – para a coesão da Europa, para a resiliência da Ucrânia e para a credibilidade da ordem internacional baseada em regras.
Ao sugerir concessões territoriais a Moscou e ao ser articulado sem participação plena da Europa e de Kiev, o plano acende alertas em todo o continente. Governos europeus se veem divididos entre o desejo de pôr fim a uma guerra custosa e o medo de legitimar a lógica de que a força garante vantagens permanentes.
Enquanto isso, os mercados, a indústria de defesa e a opinião pública acompanham com atenção. Qualquer decisão tomada nos próximos meses não dirá respeito apenas ao futuro da Ucrânia, mas também ao formato da segurança europeia nas próximas décadas.

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