Relações comerciais UE–EUA: o novo capítulo da guerra de tarifas

Ursula von der Leyen e Donald Trump caminham juntos em campo de golfe na Escócia, onde foi fechado acordo para evitar tarifas de 50%
Ursula von der Leyen e Donald Trump em campo de golfe na Escócia, em julho, quando foi acertado o acordo para evitar a ameaça de tarifas de 50%. Foto: Andrew Harnik/Getty Images

As relações comerciais entre Estados Unidos e União Europeia entram em mais um capítulo decisivo. Após meses de tensão, Washington e Bruxelas se preparam para retomar negociações de alto nível visando destravar pontos sensíveis do acordo tarifário fechado em julho – um entendimento que, longe de encerrar a crise, abriu uma nova rodada de disputas políticas e econômicas entre os dois lados do Atlântico.

No centro da discórdia está o impacto da política de “tarifas recíprocas” do governo Donald Trump, formalizada no chamado pacote de “tarifas do Dia da Libertação”, que impôs uma tarifa-base de 10% sobre praticamente todas as importações, com sobretaxas específicas para parceiros estratégicos, inclusive europeus.

A UE, tradicionalmente defensora do multilateralismo comercial e das regras da OMC, foi empurrada para um terreno desconfortável: negociar sob pressão, com ameaça explícita de tarifas ainda mais altas, enquanto tenta proteger sua indústria, seu modelo econômico e sua credibilidade política.

O acordo de julho: trégua ou capitulação?

Em agosto de 2025, Estados Unidos e União Europeia anunciaram um “acordo-quadro” batizado de Agreement on Reciprocal, Fair, and Balanced Trade (Acordo sobre Comércio Recíproco, Justo e Equilibrado). Na prática, o que se apresentou como um reequilíbrio das relações transatlânticas consolidou um cenário de forte assimetria:

  • A maior parte das exportações europeias passou a enfrentar tarifa de 15% ao entrar no mercado norte-americano;
  • Determinados produtos dos EUA, considerados “estratégicos”, receberam tratamento muito mais favorável, com tarifas próximas de 0% em alguns segmentos.

Críticos na Europa classificaram o acordo como uma concessão excessiva a Washington, argumentando que Bruxelas aceitou uma estrutura tarifária que penaliza suas exportações industriais, agrícolas e de bens de alto valor agregado, em troca de uma paz temporária e incerta. Editorialistas e analistas apontaram que a UE teria “cedido demais, por medo de algo pior”: tarifas de 50% ameaçadas por Trump caso não houvesse entendimento até julho.

Ao mesmo tempo, o acordo não resolveu questões centrais:

  • Tarifas sobre aço e alumínio europeus continuaram em patamares elevados;
  • Produtos derivados de aço, componentes industriais e maquinário seguem submetidos a regras e sobretaxas complexas;
  • O setor de alimentos e bebidas – incluindo vinhos, uísque e cognac – ainda enfrenta restrições relevantes no mercado norte-americano.

Em outras palavras, o acordo de julho não foi o fim da crise, mas um armistício frágil, agora em revisão.

A volta da mesa de negociações

Depois de uma pausa de dois meses, UE e EUA voltam à mesa em Bruxelas com uma agenda pesada. De um lado, Washington chega representado pelo secretário de Comércio e pelo representante de Comércio dos EUA, pressionando por mais concessões europeias e demonstrando frustração com o ritmo da implementação do acordo. Do outro, a Comissão Europeia tenta reabrir pontos críticos sem desencadear retaliações imediatas.

Os principais temas em discussão incluem:

  • Tarifas sobre aço e alumínio: a UE tenta reduzir ou eliminar sobretaxas que considera injustificadas e distorcivas.
  • Tarifas “ocultas” em produtos ligados ao aço: centenas de itens industriais – como peças de máquinas, componentes automotivos e equipamentos – acabam atingidos indiretamente, gerando custo adicional e burocracia para exportadores europeus.
  • Setor de alimentos e bebidas: Bruxelas quer aliviar tarifas sobre vinhos, destilados e outros produtos de alto valor, que são vitrine da marca “Europa” no mercado global.
  • Setores estratégicos: semicondutores, cadeia de suprimentos de alta tecnologia e cooperação em defesa também entram na pauta, refletindo o fato de que comércio e segurança hoje caminham lado a lado.

Ao mesmo tempo, Washington usa o peso do mercado norte-americano e o poder das tarifas para forçar a Europa a alinhar-se a sua estratégia mais ampla de contenção da China e de reconfiguração das cadeias globais de valor.

A lógica de Trump: tarifas como arma geopolítica

O pano de fundo dessas negociações é a transformação da política comercial dos EUA em um instrumento de pressão geopolítica. Desde o discurso de “Dia da Libertação” em abril, Trump tornou as tarifas um eixo central de sua agenda econômica, vinculando-as a déficits comerciais, segurança nacional e reposicionamento industrial interno.

A UE não é alvo isolado. A mesma lógica tarifária vem sendo aplicada a:

  • China, com disputa acirrada em tecnologia, semicondutores e indústria pesada;
  • Índia, que enfrentou tarifas punitivas de até 50% ligadas à compra de petróleo russo;
  • Aliados asiáticos como Japão e Coreia do Sul, pressionados a aceitar novos acordos sob ameaça de tarifas em veículos e outros bens industriais.

A mensagem é clara: ou os parceiros aceitam um rearranjo das relações comerciais em termos mais favoráveis a Washington, ou enfrentam tarifas crescentes.

Para a Europa, isso cria um dilema estratégico: como resistir sem romper com o principal parceiro de segurança e um dos maiores mercados para suas exportações?

A posição europeia: entre a defesa da indústria e o medo da ruptura

A resposta europeia tem sido marcada por cautela e divisões internas. Países com forte setor exportador industrial – como Alemanha e Itália – mostram-se mais abertos a concessões que garantam previsibilidade e evitem uma escalada tarifária devastadora para suas empresas. Outros, como França e Irlanda, temem que um acordo desequilibrado consolide uma posição de fragilidade estrutural para o bloco.

Essa fragmentação dificulta a construção de uma estratégia unificada. Alguns elementos, porém, são claros:

  1. Evitar a escalada
    Bruxelas tem, deliberadamente, atrasado ou suavizado medidas de retaliação. A UE já aprovou pacotes de contra-tarifas sobre dezenas de bilhões de euros em importações norte-americanas, mas adiou sua aplicação com o objetivo de manter espaço político para negociação.
  2. Ganhar tempo por razões geopolíticas
    A UE sabe que qualquer ruptura séria com Washington teria impacto direto não só no comércio, mas também na guerra na Ucrânia, na segurança energética e na coesão interna do bloco. Diplomaticamente, há a percepção de que o tempo pode enfraquecer parte das ameaças de Trump – seja por decisões judiciais nos EUA, seja pelo custo econômico interno de tarifas prolongadas.
  3. Tentar limitar os danos
    A estratégia europeia parece focada em transformar o que hoje é um acordo visto como assimétrico e desfavorável em algo menos desequilibrado, reduzindo tarifas em setores-chave, garantindo exceções e, ao mesmo tempo, protegendo seu espaço de manobra para o futuro.

Impacto econômico: quem paga a conta?

Por trás da linguagem técnica das tarifas, há uma questão central: quem paga a conta dessa guerra comercial?

Para a União Europeia, os principais impactos são:

  • Aumento do custo de acesso ao mercado norte-americano para setores altamente competitivos como automotivo, maquinário, química fina, siderurgia e produtos de luxo.
  • Queda de margens de lucro e perda de competitividade frente a concorrentes de países não sujeitos aos mesmos níveis tarifários.
  • Insegurança regulatória: empresas europeias precisam operar sob constante ameaça de novas tarifas, revogações de isenções e mudanças unilaterais nas regras.

Para os EUA, as tarifas também trazem efeitos colaterais:

  • Pressão inflacionária, já que tarifas funcionam, na prática, como imposto sobre importações;
  • Custo mais alto para a indústria norte-americana, que depende de insumos importados, incluindo aço, componentes automotivos e bens intermediários europeus;
  • Risco de retaliações cruzadas, afetando exportadores agrícolas e industriais dos próprios EUA.

Na prática, uma parte da conta é repassada ao consumidor dos dois lados do Atlântico, enquanto setores específicos sofrem com perda de mercado, incerteza e adiamento de investimentos.

Comércio, segurança e o “triângulo” com a China

As negociações UE–EUA também não podem ser vistas isoladamente do tabuleiro global. Enquanto Europa e Estados Unidos disputam tarifas entre si, ambos estão simultaneamente preocupados com a expansão comercial e tecnológica da China.

  • A UE acusa Pequim de “dumping” industrial, inundando o mercado europeu com produtos baratos em setores como aço, painéis solares, baterias e veículos elétricos.
  • Washington, por sua vez, vê a China como principal rival estratégico e usa tarifas, controles de exportação e restrições tecnológicas como instrumentos de contenção.

Nesse contexto, tanto Europa quanto EUA reconhecem que não podem se dar ao luxo de uma ruptura total entre si. Há uma interdependência estratégica em áreas como:

  • Cadeias de semicondutores;
  • Indústria de defesa e tecnologias de uso dual;
  • Energia e segurança de rotas comerciais;
  • Coordenação de sanções e regimes de controle de exportações.

Isso faz com que, apesar da retórica e das ameaças, ambos os lados estejam buscando, nas negociações atuais, um equilíbrio delicado: manter pressão para obter vantagens comerciais, sem romper os laços estratégicos que os aproximam.

Cenários possíveis: para onde vão as relações comerciais UE–EUA?

A retomada das negociações abre alguns cenários plausíveis para os próximos meses:

  1. Ajuste gradual do acordo de julho
    É a hipótese mais provável no curto prazo. Washington concordaria em aliviar tarifas específicas (por exemplo, em produtos de aço derivados ou setores como vinhos e destilados), enquanto a UE reforçaria compras de certos bens norte-americanos – como gás natural liquefeito (GNL) e equipamentos militares – em uma espécie de “compensação geopolítica”.
  2. Escalada controlada
    Caso as conversas travem, Trump pode voltar a ameaçar tarifas de 50% sobre uma gama maior de produtos, elevando a pressão política. A UE, por sua vez, poderia finalmente ativar pacotes de retaliação, mirando sobretudo setores com peso político nos EUA, como agricultura e serviços.
  3. Reconfiguração mais profunda da relação comercial
    No médio prazo, não está descartada a tentativa de transformar o atual acordo assimétrico em algo mais ambicioso, retomando – em outra lógica – o espírito de um grande acordo transatlântico de comércio e investimento. Porém, o clima político em ambos os lados torna esse cenário mais distante.

Conclusão: um teste de força para a autonomia europeia

A disputa tarifária com os Estados Unidos é mais do que uma briga comercial. Ela é um teste de força para a autonomia estratégica da União Europeia.

Ao aceitar um acordo que muitos consideram desequilibrado, mas ao mesmo tempo tentar reabri-lo pela via diplomática, Bruxelas revela a tensão entre dois impulsos:

  • De um lado, a vontade de preservar a parceria transatlântica, fundamental para a segurança e para o posicionamento geopolítico da Europa;
  • De outro, a necessidade de evitar que o bloco seja visto como refém da política tarifária de Washington, comprometendo sua credibilidade como ator global.

As negociações que recomeçam agora vão mostrar se a UE é capaz de corrigir a assimetria do acordo de julho, proteger seus setores estratégicos e, ao mesmo tempo, manter o canal aberto com os Estados Unidos em um mundo cada vez mais marcado pela rivalidade entre grandes potências.

Para além dos números e percentuais, o que está em jogo é a resposta a uma pergunta central:
a Europa será apenas uma peça na estratégia comercial dos EUA, ou conseguirá afirmar um projeto próprio de integração econômica e autonomia geopolítica?

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