México em disputa: o embate entre Claudia Sheinbaum e o bilionário Ricardo Salinas Pliego expõe o novo equilíbrio de poder

A presidente do México, Claudia Sheinbaum, durante coletiva de imprensa no Palácio Nacional, na Cidade do México, em 3 de novembro de 2025
A presidente mexicana Claudia Sheinbaum participa de coletiva de imprensa no Palácio Nacional, na Cidade do México, em 3 de novembro de 2025. Henry Romero/Reuters

O início do governo de Claudia Sheinbaum no México já deixou claro que não será um mandato de acomodação com as elites econômicas tradicionais. O confronto público com o mega-bilionário Ricardo Salinas Pliego — dono de banco, emissora de TV e grupos empresariais de grande peso — tornou-se um símbolo de algo maior: a tentativa de redefinir a relação entre Estado, grandes fortunas e poder político no país.

A briga, que passa por cobranças fiscais, acusações de dívidas com o governo e embate de narrativas nas redes e na mídia, vai muito além de um simples litígio tributário. Ela coloca em jogo a capacidade do novo governo de enfrentar interesses estabelecidos e de provar que o discurso de “transformação” pode se traduzir em ações concretas contra privilégios históricos.

Quem é quem no conflito: governo x conglomerado

De um lado, está Claudia Sheinbaum, primeira mulher a presidir o México, herdeira política e aliada do projeto de Andrés Manuel López Obrador (AMLO). Ela chega ao poder com a promessa de continuidade da chamada “Quarta Transformação”: combate à corrupção, maior presença do Estado, programas sociais robustos e enfrentamento de poderes econômicos considerados abusivos.

Do outro lado, está Ricardo Salinas Pliego, um dos homens mais ricos do país. Seu império inclui:

  • um banco voltado principalmente para as camadas populares, com forte presença no varejo;
  • uma importante emissora de televisão, com grande alcance nacional;
  • empresas em áreas como comércio, serviços e mídia.

Ele não é apenas um empresário: é um ator político-mediático, com influência sobre a opinião pública e capacidade de moldar narrativas por meio de seus canais de comunicação.

A disputa fiscal: números, dívidas e o discurso da justiça tributária

O centro oficial do conflito está em questionamentos fiscais: o governo mexicano cobra valores elevados que, segundo autoridades, correspondem a dívidas tributárias e pendências acumuladas ao longo de anos envolvendo empresas do conglomerado de Salinas Pliego.

Para o governo, a mensagem é clara:

  • não há mais espaço para “intocáveis” no topo da pirâmide econômica;
  • grandes grupos devem pagar o que o Estado considera devido, assim como cidadãos comuns;
  • a justiça fiscal é peça central da agenda de combate à desigualdade.

Já o bilionário reage em outra direção:

  • coloca em dúvida os valores cobrados;
  • apresenta o litígio como excesso ou perseguição do governo;
  • busca se comunicar diretamente com o público, posicionando-se como vítima de uma ofensiva política.

Assim, um caso que poderia ser tratado como um processo administrativo ou judicial técnico torna-se um confronto simbólico sobre quem paga a conta do Estado e qual o limite da pressão governamental sobre os super-ricos.

A arena da opinião pública: TV, redes sociais e narrativa política

Um elemento decisivo nesse conflito é o fato de que se trata de um embate entre um governo eleito e um ator que controla mídia e narrativa.

  • Salinas Pliego usa seus perfis, sua exposição e, em diferentes graus, a estrutura de comunicação sob sua órbita para se defender, ironizar autoridades e mobilizar simpatizantes.
  • O governo, por sua vez, responde em coletivas, discursos oficiais e na sua própria comunicação digital, reforçando a ideia de que está enfrentando privilégios e combatendo “poderosos que não querem pagar impostos”.

O resultado é que a questão fiscal extrapola documentos e planilhas e se converte num debate nacional sobre:

  • até que ponto o Estado pode pressionar um grande empresário sem ser acusado de perseguição;
  • até onde um bilionário pode usar sua influência midiática para pressionar o governo em causa própria;
  • quem está, de fato, do lado do interesse público.

Essa disputa comunicacional é crucial porque tanto Sheinbaum quanto Salinas entendem que, no México contemporâneo, governar é também controlar narrativa.

Continuidade e ruptura em relação ao governo AMLO

O conflito também funciona como um teste de continuidade do projeto político iniciado com López Obrador:

  • AMLO construiu grande parte de sua identidade política confrontando “a máfia do poder”, elites econômicas e setores midiáticos hostis.
  • Agora, Sheinbaum precisa provar que não é apenas uma sucessora formal, mas que dará sequência ao enfrentamento de privilégios, inclusive quando isso significa comprar briga com figuras muito poderosas.

Ao entrar em choque com um dos bilionários mais conhecidos do país, o governo sinaliza:

  • que não pretende recuar da agenda de cobrança de grandes devedores;
  • que entende esse tipo de embate como parte de um projeto mais amplo de “transformação” das relações entre Estado e elite econômica;
  • que está disposto a suportar desgaste na mídia tradicional para consolidar sua base social.

Para setores críticos, no entanto, existe o risco de que essa postura seja lida como uso político da máquina fiscal, com foco seletivo em figuras específicas, especialmente as mais críticas ao governo.

A dimensão institucional: Estado forte ou intervenção excessiva?

Do ponto de vista institucional, a disputa levanta questões sensíveis:

  1. Autonomia das instituições fiscais e judiciais
    Quando a cobrança a um grande empresário vira assunto político de alto nível, surge a pergunta:
    • a atuação do fisco e da justiça está sendo guiada por critérios técnicos?
    • ou há uso político de processos e multas para pressionar adversários?
  2. Segurança jurídica para o investimento
    Parte do setor empresarial observa o caso com atenção, tentando identificar:
    • se o governo seguirá regras claras em sua cobrança;
    • ou se o ambiente de negócios poderá ser afetado por decisões percebidas como arbitrárias ou politizadas.
  3. Fortalecimento ou fragilização do Estado
    Se bem conduzido, o processo pode fortalecer a imagem de um Estado que faz cumprir a lei de forma igualitária, inclusive para os mais ricos.
    Se mal gerido, pode reforçar a impressão de um Estado intervencionista e imprevisível, alimentando desconfiança e fuga de investimentos.

Poder econômico e poder político: quem testa quem?

O embate entre Sheinbaum e Salinas Pliego também é revelador de um equilíbrio de forças que está em redefinição no México:

  • O governo testa a resiliência da elite econômica, mostrando que confrontos diretos com o Executivo podem trazer consequências, inclusive no plano fiscal e regulatório.
  • O empresário testa o limite do governo, usando sua visibilidade para medir até onde o Executivo está disposto a ir num cenário de pressão pública e risco de desgaste.

Na prática, ambos estão enviando recados:

  • Sheinbaum sinaliza a outros grandes grupos que não pretende recuar da agenda de cobrança e de regulação;
  • Salinas mostra a outros empresários que não aceitará passivamente o enquadramento governamental, abrindo espaço para possíveis alianças políticas e mediáticas contra o governo.

Esse jogo de forças ajuda a definir qual será o espaço real de manobra do Estado mexicano diante de grandes conglomerados ao longo do mandato.

Impactos sociais e políticos: o que está em jogo para a população

Para a maioria da população mexicana, o conflito pode parecer distante, travado em esferas de alto poder. Mas seus desdobramentos têm impacto concreto:

  • Se o governo conseguir efetivamente cobrar grandes devedores, essa receita pode fortalecer programas sociais, investimentos em infraestrutura e políticas públicas, reforçando a ideia de justiça fiscal.
  • Se a disputa se transformar apenas em guerra de narrativas, sem resultados práticos, pode aumentar o ceticismo, a sensação de que ricos continuam livres de consequências e que conflitos entre elites não se traduzem em benefícios reais para o povo.

Além disso:

  • A maneira como a briga é apresentada na mídia influencia a percepção pública sobre o governo, seu compromisso com a legalidade e sua capacidade de enfrentar privilégios.
  • O comportamento do bilionário e de outros empresários à sua volta também molda a visão da população sobre a responsabilidade social das grandes fortunas e seu papel na democracia.

O México como espelho da América Latina

Esse embate não é apenas um caso mexicano: ele ecoa em toda a América Latina, onde é comum:

  • Estados historicamente capturados ou influenciados por grandes grupos econômicos;
  • elites habituadas a negociar vantagens, isenções e condições especiais;
  • sociedades marcadas por desigualdade profunda, com pesados impostos sobre consumo e pouca eficiência em cobrar grandes patrimônios.

O que ocorre no México pode ser lido como parte de um movimento regional em que governos mais à esquerda ou com agenda social forte buscam:

  • cobrar mais de grandes empresas;
  • enfrentar conglomerados de mídia;
  • reposicionar o Estado como ator central, e não submisso, nas relações com o capital.

Ao mesmo tempo, empresários influentes reagem, seja por meio do lobby, da imprensa, da pressão internacional ou das redes sociais, tentando evitar que o pêndulo se mova demais na direção de um Estado forte demais, capaz de intervir de forma imprevisível.

Cenários possíveis: conciliação, escalada ou desgaste mútuo

O desfecho desse conflito permanece em aberto, mas alguns cenários podem ser desenhados:

  1. Conciliação negociada
    • Governo e empresário chegam a um acordo sobre valores e prazos de pagamento, cada lado proclamando algum tipo de vitória.
    • O caso se dissolveria aos poucos da esfera pública, embora deixasse lições claras sobre os limites da confrontação.
  2. Escalada prolongada
    • O litígio fiscal se intensifica, com novas ações, contestações judiciais e trocas de acusações públicas.
    • O ambiente político e econômico se torna mais tenso, com efeitos sobre investimentos e sobre a imagem internacional do México.
  3. Desgaste mútuo
    • O governo corre o risco de parecer mais preocupado em brigar com um bilionário do que em resolver problemas cotidianos da população.
    • O empresário pode ver sua imagem pública deteriorar-se, especialmente se a narrativa predominante for a de que está tentando fugir de obrigações fiscais.

Nos três cenários, o ponto em comum é que o caso já se tornou um marco da relação entre o novo governo e a elite econômica mexicana.

Conclusão: um teste decisivo para o mandato de Sheinbaum

O confronto entre Claudia Sheinbaum e Ricardo Salinas Pliego é mais do que um embate entre governo e empresário: é um teste da qualidade da democracia mexicana, da força de suas instituições e da capacidade do país de construir um modelo em que nem o Estado nem as grandes fortunas estejam acima da lei.

Se o governo conseguir conduzir o caso com transparência, respeito ao devido processo e firmeza na defesa do interesse público, pode sair fortalecido, mostrando que justiça fiscal não é apenas discurso. Se, ao contrário, a disputa descambar para personalismo, arbitrariedade ou perseguição seletiva, a promessa de “transformação” corre o risco de se converter em polarização vazia.

De qualquer maneira, o recado já foi dado: no México de hoje, a fronteira entre poder político e poder econômico está sendo redesenhada, e o conflito entre Sheinbaum e Salinas Pliego será lembrado como um dos momentos em que essa linha foi traçada com mais nitidez — e com maior impacto para o futuro do país.

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