UE & Turquia: a porta de adesão volta a se mexer

O ministro das Relações Exteriores da Turquia, Hakan Fidan, durante visita ao Departamento de Estado dos Estados Unidos em Washington, em 8 de março de 2024
O ministro das Relações Exteriores da Turquia, Hakan Fidan, durante visita ao Departamento de Estado dos Estados Unidos, em Washington, em 8 de março de 2024.

O ministro das Relações Exteriores da Turquia, Hakan Fidan, afirmou neste sábado que enxerga uma “renovação da vontade política” da Alemanha em apoiar o caminho de Ancara rumo à União Europeia e disse acreditar que “haverá novos progressos” na candidatura turca. A avaliação foi feita após declarações públicas do chanceler alemão Friedrich Merz defendendo a adesão da Turquia ao bloco.

Vinda da maior economia da UE e país com profunda interdependência política, econômica e humana com a Turquia, essa mudança de tom em Berlim é percebida em Ancara como um ponto de inflexão: o “dossiê turco” volta a ganhar espaço na agenda europeia, depois de anos de estagnação, ameaças mútuas e cooperação seletiva.

Um processo de adesão longo, turbulento – e nunca encerrado

A candidatura da Turquia à UE é uma das mais antigas da história do bloco. A trajetória ajuda a explicar por que qualquer sinal de reabertura política é tratado como relevante:

  • 1963 – Assinatura do Acordo de Associação com a então Comunidade Econômica Europeia (CEE), criando a base jurídica da aproximação.
  • 1987 – Pedido formal de adesão apresentado por Ancara.
  • 1999 – A Turquia é reconhecida como país candidato oficial na Cúpula de Helsinque.
  • 2005 – Abertura formal das negociações de adesão.
  • Década de 2010 – Congelamento de facto das negociações, sobretudo após o acirramento do autoritarismo interno, reformas constitucionais que concentraram poder na Presidência e tensões no Mediterrâneo Oriental, na Síria e com Chipre.

Ao longo desse percurso, a UE passou a ver a Turquia menos como futuro membro e mais como parceiro funcional em temas como migração, energia, combate ao terrorismo e defesa. As reformas democráticas exigidas pelos critérios de Copenhague acabaram relegadas a segundo plano, enquanto crescia a percepção de “fadiga de ampliação” dentro do bloco.

Hoje, contudo, o contexto é outro: a guerra na Ucrânia, a rivalidade com a Rússia, o papel da OTAN e a centralidade da Turquia em rotas energéticas e de transporte recolocam o país no centro dos cálculos estratégicos europeus.

O que exatamente mudou na posição da Alemanha

Nas declarações destacadas por Hakan Fidan, o chanceler alemão Friedrich Merz afirmou que quer ver a Turquia dentro da União Europeia, qualificando isso como objetivo estratégico.

Do ponto de vista turco, isso representa:

“Renovação da vontade política” – segundo Fidan, não se trata apenas de retomar um discurso pró-adesão, mas de sinalizar que Berlim está disposta a investir capital político nessa agenda dentro do Conselho Europeu.

Peso específico da Alemanha – a Alemanha é:

  • o maior parceiro comercial da Turquia dentro da UE;
  • o país com a maior diáspora turca;
  • um dos atores mais influentes nas decisões de ampliação do bloco.

Mudança de foco estratégico – Berlim vem reforçando a importância da Turquia para:

  • segurança energética (corredores alternativos ao gás russo);
  • controle migratório e estabilidade na vizinhança sudeste da UE;
  • cooperação em defesa no flanco sudeste da OTAN.

Com isso, a leitura em Ancara é que, embora a adesão plena continue distante, o eixo Berlim–Ancara volta a enxergar a candidatura turca como instrumento de influência e alinhamento estratégico, não como mera ficção jurídica.

A visão de Fidan: “novas condições e nova psicologia”

Nas suas declarações, Hakan Fidan destacou que tanto a Turquia quanto a União Europeia estão operando sob um “novo conjunto de condições e psicologia”, exigindo “abordagens e políticas renovadas” para o processo de adesão.

Alguns elementos centrais dessa “nova fase”:

Pressão geopolítica externa

Guerra na Ucrânia, rivalidade com a Rússia e instabilidade no Oriente Médio aumentam o valor estratégico da Turquia.

Para a UE, afastar Ancara de Moscou e de outros polos rivais passa por oferecer incentivos concretos, inclusive na agenda de adesão.

Turquia como ator indispensável

Membro da OTAN com posição geográfica-chave entre Europa, Ásia e Oriente Médio.

Hub energético, corredor de grãos, rota de refugiados e plataforma industrial integrada ao mercado europeu.

Mandato político interno
Fidan lembrou que, após as eleições de 2023, o presidente Recep Tayyip Erdoğan lhe deu instruções para empenhar “esforço máximo” no dossiê UE, o que ele descreve como um mandato direto para reativar essa frente.

Em outras palavras, há hoje uma convergência de interesses estratégicos que empurra as duas partes para uma tentativa de reaproximação, ainda que cercada de desconfianças.

Obstáculos persistentes: política interna, direitos e Chipre

Apesar do novo clima, o caminho da Turquia rumo à UE continua bloqueado por obstáculos estruturais que não desaparecem com declarações positivas.

Estado de direito e direitos fundamentais

A UE mantém críticas duras à trajetória democrática da Turquia nas últimas duas décadas:

  • concentrações de poder na Presidência;
  • limitações à liberdade de imprensa;
  • perseguição a opositores, ONGs e acadêmicos;
  • uso extensivo de leis antiterrorismo contra dissidentes.

Esses pontos são centrais na avaliação de cumprimento dos critérios de Copenhague, indispensáveis para qualquer avanço real de adesão.

Questão de Chipre

O impasse em torno de Chipre, membro da UE, continua sendo um dos principais bloqueios formais à abertura e ao fechamento de capítulos de negociação. Sem progresso substantivo na ilha dividida, vários Estados-membros resistem a qualquer passo significativo no dossiê turco.

Ceticismo em vários países da UE

Mesmo com a Alemanha sinalizando apoio renovado, importantes capitais europeias seguem resistentes a:

  • ampliar ainda mais as fronteiras da UE;
  • integrar um país grande, de maioria muçulmana, com forte peso geopolítico e trajetória democrática controversa;
  • lidar com o impacto migratório e político interno dessa adesão.

O resultado é uma abordagem que, em muitos casos, prefere falar em “parceria estratégica reforçada” ou “integração setorial” em vez de adesão plena.

O que realmente pode avançar na prática

Quando Fidan fala em “novos progressos”, dificilmente está se referindo à reabertura maciça de capítulos formais de negociação em curto prazo. A agenda provável é mais gradativa e pragmática:

  1. Atualização da União Aduaneira
    • A modernização do acordo de 1995 – incluindo serviços, agricultura e comércio digital – é uma demanda antiga da Turquia e interessa também a empresas europeias.
    • Um avanço nesse front seria um sinal concreto de reaproximação, com impacto econômico imediato.
  2. Facilitação de vistos
    • A UE pode retomar discussões sobre liberalização de vistos ou, ao menos, regimes mais favoráveis para estudantes, empresários e pesquisadores turcos.
    • Isso teria forte efeito simbólico e político, sobretudo para a sociedade civil.
  3. Diálogos de alto nível em energia, defesa e migração
    • Fortalecer fóruns bilaterais e trilaterais (UE–Turquia–OTAN) sobre segurança, fronteiras, Mediterrâneo Oriental e fluxo de refugiados.
  4. Reativar capítulos “técnicos” de adesão
    • Mesmo sem perspectiva imediata de entrada, a UE pode desbloquear alguns capítulos ligados a normas regulatórias, meio ambiente, digitalização e conectividade, usando isso como mecanismo de aproximação gradual.

Na leitura turca, qualquer um desses avanços reforça a narrativa interna de que a estratégia de não romper com a UE, mas negociar de forma dura e pragmática, está dando resultado.

Por que a Alemanha aposta de novo na carta turca

A mudança de tom em Berlim também responde a necessidades internas e externas:

  • Diáspora turca na Alemanha – Milhões de cidadãos de origem turca vivem no país, influenciando debates políticos, sociais e eleitorais. Manter um canal positivo com Ancara tem efeitos domésticos relevantes.
  • Economia e cadeias produtivas – Empresas alemãs estão fortemente integradas à indústria turca, usando o país como base de produção e exportação para mercados vizinhos.
  • Segurança europeia – Com a UE redefinindo sua política de segurança e defesa, enfraquecer a cooperação com um dos principais membros da OTAN seria visto como erro estratégico.

Assim, a defesa pública da adesão turca não significa ingenuidade sobre os problemas internos do país, mas reflete um cálculo de custo-benefício: é melhor manter a Turquia ancorada ao Ocidente – com incentivos, condicionalidades e canais institucionais – do que deixá-la derivar para órbitas rivais.

O que Ancara quer extrair dessa nova fase

Do lado turco, o discurso de Fidan combina pragmatismo e ambição:

  • Reforçar a legitimidade interna
    • A ideia de que “a UE ainda precisa da Turquia” alimenta a narrativa de governo de que o país é indispensável e não um candidato em posição de fragilidade.
  • Obter ganhos econômicos concretos
    • Um acordo atualizado de União Aduaneira, investimentos europeus e facilitação de comércio têm impacto direto sobre inflação, emprego e crescimento.
  • Ganhar margem de manobra geopolítica
    • Ao mostrar que pode se aproximar da UE, Ancara aumenta seu poder de barganha também com Moscou, Washington e outras capitais.

Quando Fidan afirma que espera “novos progressos”, ele sinaliza tanto para Bruxelas quanto para o público doméstico que a bola está, em boa medida, no campo da UE – caberia ao bloco mostrar, com ações, que a retórica de reaproximação será acompanhada de medidas concretas.

Perspectivas: adesão plena ou integração “por partes”?

Na prática, a curto e médio prazos, o cenário mais provável não é o de uma adesão rápida, mas sim de uma integração por camadas, em que:

  • a Turquia se aproxima ainda mais do mercado interno europeu, da política energética e da cooperação em segurança;
  • a UE mantém condicionalidades duras em temas democráticos e de direitos humanos;
  • a questão da adesão formal permanece em aberto, usada como instrumento de pressão e incentivo.

A declaração de Hakan Fidan, ancorada no apoio público da Alemanha, significa que a porta não está mais trancada – está entreaberta. Mas atravessá-la ainda exigirá mudanças profundas em Ancara, convergência entre os Estados-membros e capacidade de a UE responder à própria pergunta que evita há décadas: que tipo de união política está disposta a ser num mundo cada vez mais competitivo?

Enquanto essa resposta não vem, a Turquia segue num lugar ambíguo: nem plenamente dentro, nem totalmente fora – mas novamente no centro do xadrez europeu.

Conclusão

A sinalização de Hakan Fidan sobre uma “renovação da vontade política” alemã recoloca a candidatura da Turquia à União Europeia no mapa, mas não apaga os obstáculos que se acumularam ao longo de décadas. A mensagem vinda de Berlim abre espaço para uma reaproximação estratégica, especialmente em áreas como economia, energia, migração e segurança, mas está longe de significar uma via rápida rumo à adesão plena.

O que se desenha, no curto e médio prazo, é um cenário de integração gradual, por etapas, em que a Turquia se torna ainda mais entrelaçada ao projeto europeu sem, necessariamente, obter todas as prerrogativas de um Estado-membro. Em contrapartida, a UE mantém a pressão sobre temas sensíveis — Estado de direito, direitos fundamentais e a questão de Chipre — usando o próprio processo de adesão como instrumento de influência.

Para Ancara, manter a porta aberta, ainda que apenas entreaberta, já é um ganho político e geopolítico: reforça a narrativa de que o país permanece um ator indispensável para o futuro da Europa. Para Bruxelas e as principais capitais europeias, reativar o dossiê turco é menos um gesto de generosidade e mais um cálculo de sobrevivência num ambiente internacional cada vez mais competitivo. Entre expectativas e frustrações, a questão central permanece: se a porta está voltando a se mexer, até onde a UE estará disposta a abri-la — e até onde a Turquia estará disposta a mudar para atravessá-la.

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