Apoio bilionário a semicondutores na República Tcheca, pressão sobre as regras de “golden power” da Itália e o discurso de António Costa antes do G20 mostram uma UE que tenta equilibrar autonomia industrial, integridade do mercado interno e ambições globais.
A União Europeia vive um momento de redefinição estratégica. Em um único dia, Bruxelas anunciou apoio maciço à construção de uma fábrica de semicondutores na República Tcheca, aumentou a pressão sobre a Itália por causa de regras consideradas excessivamente intervencionistas e colocou a parceria com a África no centro de seu discurso antes da cúpula do G20 em Joanesburgo.
Vistos em conjunto, esses movimentos revelam uma UE que tenta responder simultaneamente a três desafios:
- Garantir autonomia industrial e tecnológica em setores críticos, como chips;
- Defender o mercado único contra distorções causadas por políticas nacionais de proteção;
- Reforçar sua relevância geopolítica, sobretudo em relação ao Sul Global e à África.
Mais do que decisões isoladas, trata-se de peças de um tabuleiro maior, em que a Europa busca não ser apenas palco, mas também ator principal na disputa global por poder econômico e político.
A aposta da UE em semicondutores: o caso Onsemi na República Tcheca
Um dos anúncios mais emblemáticos foi a aprovação de um pacote de ajuda estatal de centenas de milhões de euros para apoiar a construção de uma fábrica de semicondutores na República Tcheca, ligada à empresa Onsemi. O investimento não é apenas mais uma instalação industrial; ele faz parte da estratégia europeia de reduzir a dependência externa na produção de chips.
Por que semicondutores são tão estratégicos?
Semicondutores são o “cérebro” de praticamente tudo:
- Carros modernos e veículos elétricos;
- Equipamentos militares e sistemas de defesa;
- Smartphones, computadores, redes 5G;
- Infraestruturas críticas, como redes elétricas inteligentes.
A pandemia, a guerra na Ucrânia e as tensões entre Estados Unidos e China expuseram a fragilidade das cadeias de fornecimento globais, deixando claro que depender de poucos fornecedores, concentrados em outras regiões, é um risco. A Europa sentiu isso diretamente, com fábricas parando ou reduzindo produção por falta de chips.
Autonomia estratégica e concorrência global
Ao apoiar uma grande fábrica de semicondutores em solo europeu, Bruxelas persegue três objetivos:
- Aumentar a produção interna de chips, reduzindo vulnerabilidades em crises futuras;
- Atraí-los para o ecossistema europeu de inovação, fortalecendo universidades, centros de pesquisa e startups;
- Manter a competitividade industrial em relação a Estados Unidos e Ásia, que investem pesadamente em seus próprios programas de chips.
Esse tipo de apoio estatal, no entanto, é cuidadosamente enquadrado nas regras de concorrência da UE. A lógica é permitir que os Estados-membros invistam em setores estratégicos, sem abrir a porta para uma corrida de subsídios descontrolada que distorça o mercado interno.
Itália sob pressão: o embate em torno do “golden power”
Ao mesmo tempo em que aprova ajuda estatal em áreas estratégicas, a Comissão Europeia se prepara para enviar um alerta formal à Itália por causa de suas regras de “golden power”. Esse mecanismo dá ao governo italiano poderes especiais sobre empresas em setores considerados sensíveis, como energia, telecomunicações e defesa.
O que é o “golden power”?
Em termos simples, “golden power” é o direito do governo de:
- Vetar ou impor condições a aquisições, fusões ou investimentos em empresas estratégicas;
- Intervir para evitar que ativos considerados críticos caiam nas mãos de investidores vistos como problemáticos, muitas vezes estrangeiros.
Em tese, o objetivo é proteger a segurança nacional e ativos essenciais. Vários países europeus têm mecanismos semelhantes. O problema, no caso italiano, é a percepção de que essas regras estariam sendo aplicadas de forma ampla e pouco previsível, gerando insegurança jurídica e dificultando o funcionamento do mercado interno.
Bruxelas x Roma: proteção legítima ou intervenção excessiva?
A tensão gira em torno de um equilíbrio delicado:
- De um lado, há a necessidade de proteger setores estratégicos, especialmente em tempos de rivalidade geopolítica;
- De outro, existe o compromisso com a liberdade de circulação de capitais e a integridade do mercado interno da UE.
Quando um país membro usa seus poderes especiais de forma agressiva, isso pode:
- Desencorajar investimentos;
- Favorecer empresas “amigas” e prejudicar concorrentes;
- Criar um ambiente de incerteza para empresas de outros países europeus.
Ao sinalizar um alerta formal, a Comissão envia um recado claro: medidas de segurança não podem servir de pretexto para protecionismo disfarçado. A mensagem não é apenas para Roma, mas para todos os governos que cogitam expandir poderes de intervenção sobre a economia.
António Costa, o G20 e a centralidade da África
Em paralelo às disputas internas, a UE tenta reforçar seu papel no cenário global. Em declarações antes da cúpula do G20 em Joanesburgo, o presidente do Conselho Europeu, António Costa, destacou a parceria estratégica com a África e a importância do continente em um mundo multipolar.
Por que a África é tão central para a UE?
Há várias razões para isso:
- Demografia e mercado: a África é um dos continentes que mais crescem em população, com uma população jovem e um imenso potencial de mercado consumidor.
- Recursos naturais e transição energética: minerais críticos para baterias, painéis solares e tecnologias verdes estão concentrados em países africanos.
- Clima e segurança: mudanças climáticas, insegurança alimentar e conflitos regionais na África têm impacto direto em fluxos migratórios e na estabilidade que a Europa busca preservar em seu entorno.
Ao enfatizar a parceria com a África, a UE tenta se posicionar como parceiro de longo prazo, em contraste com abordagens muitas vezes vistas como puramente extrativistas ou transacionais de outras potências.
Multipolaridade e o lugar da Europa
A retórica de Costa insere a Europa em um contexto de multipolaridade, em que não há mais apenas um eixo de poder dominante, mas vários: Estados Unidos, China, Índia, Rússia, blocos regionais e, potencialmente, a própria África.
A UE procura se apresentar como:
- Ponte entre Norte e Sul Global,
- Defensora de uma ordem internacional baseada em regras,
- Atores que oferecem investimento, tecnologia e cooperação, em vez de pura competição predatória.
Nesse contexto, o G20 em Joanesburgo não é apenas mais uma cúpula: é uma vitrine na qual a Europa tenta mostrar que ainda é capaz de propor agendas globais, como transição verde, reforma da governança financeira internacional e desenvolvimento sustentável.
Um fio condutor: autonomia, regras e projeção de poder
À primeira vista, ajuda para uma fábrica de semicondutores na República Tcheca, pressão sobre a Itália e discurso sobre África parecem temas desconectados. Mas todos eles são parte de um mesmo esforço: redefinir o papel da União Europeia em três dimensões centrais.
1. Autonomia estratégica
Com o investimento em semicondutores, a UE sinaliza que não quer ficar refém de choques externos e tensões geopolíticas entre outras potências. A ideia de “autonomia estratégica” – especialmente em tecnologia, energia e defesa – tornou-se uma das palavras-chave da política europeia.
2. Governança e disciplina interna
O caso italiano mostra que essa autonomia não pode significar cada país por si. Para que o bloco funcione, é preciso preservar o mercado único como um espaço de regras claras e previsíveis. Quando um Estado-membro “puxa demais a corda” com instrumentos como o “golden power”, Bruxelas reage para evitar fragmentação e protecionismos.
3. Papel global e relações com o Sul Global
Ao olhar para a África e falar de multipolaridade, a UE tenta superar a imagem de um continente voltado apenas para seus problemas internos. A mensagem é que a Europa quer ser protagonista na construção de uma nova ordem global, dialogando com regiões que historicamente foram vistas apenas como periferia.
Desafios e riscos no horizonte
Apesar da narrativa ambiciosa, a UE enfrenta riscos reais:
- Fragmentação interna: divergências entre Estados-membros sobre indústria, energia, migração e política externa continuam fortes.
- Recursos limitados: financiar a transição verde, rearmar-se, investir em tecnologia e, ao mesmo tempo, manter políticas sociais exige um equilíbrio fiscal complexo.
- Concorrência externa: Estados Unidos e China seguem investindo pesado em tecnologia e influência global, disputando o mesmo espaço em que a Europa tenta se posicionar – inclusive na África.
Se não conseguir alinhar discurso e prática, a UE corre o risco de ficar presa a meio caminho: nem plenamente autônoma, nem plenamente integrada, e com dificuldades para ser ouvida no debate global.
Conclusão
Os acontecimentos recentes em Bruxelas – o apoio à fábrica de semicondutores na República Tcheca, o embate com a Itália sobre o “golden power” e o foco na parceria com a África na véspera do G20 – são sinais claros de que a União Europeia está em pleno processo de recalibração estratégica.
Ao mesmo tempo em que tenta fortalecer suas bases industriais e tecnológicas, a UE procura disciplinar seus próprios membros e projetar uma imagem de ator global responsável e influente. Essa combinação não é simples e exigirá, nos próximos anos, decisões difíceis, tanto em nível nacional quanto em nível comunitário.
O sucesso ou fracasso desse esforço ajudará a definir se a Europa será, no mundo que se desenha, apenas um mercado importante, ou um polo de poder capaz de influenciar regras, agendas e caminhos da política internacional.

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